segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"A crise" em diálogo platónico


- Ângela, estamos com um problema, isto assim não vai lá.

- O que significa “estamos”, Pedro? Eu e você?

- Não, Ângela, estava a referir-me a Portugal. Mas já que fala nisso, a verdade é que me parece que pode ser um problema para toda a zona euro. É como a história do barco que vai ao fundo e se lixam todos.

- Todos, todos? Até o Capitão Schettino? Estou a brincar, caro amigo, conte lá o que o atormenta.

- O ajustamento económico é impossível! Estávamos com enormes défices públicos e com enormes défices das contas correntes, por isso fui obrigado pela troika a atacar tudo ao mesmo tempo. Carreguei nos impostos e cortei na despesa. Como era esperado o consumo interno retraiu-se, diminuindo as importações, e quem conseguiu começou a vender para fora, aumentando as exportações…

- Mas isso são excelentes notícias! Os vossos maiores problemas estavam relacionados com os desequilíbrios externos e o objectivo da austeridade era exactamente resolver essa hemorragia. Portugal produzia 100 e consumia 110, por isso é que se desenhou um programa de ajustamento. Pelo que ouço está a resultar em cheio.      

- Sim, até aqui tudo bem, a balança comercial melhorou e as necessidades de financiamento do estrangeiro diminuíram. O problema é que o sector exportador é pequeno, estas transformações estruturais da economia levam tempo e, enquanto se vai dando a metamorfose, o desemprego explode, dando cabo da harmonia interna e das contas da Segurança Social.

- Pois, isso não é novidade para mim, toda a gente sabe que atacar o défice público e o défice da conta corrente ao mesmo tempo, ainda por cima sem poder desvalorizar a moeda, é extremamente doloroso. É como a história da manta curta, para se poder cobrir a cabeça tem de se descobrir os pés. Mas, como sabe, não há alternativa para corrigir as muitas asneiras que foram sendo feitas. O ideal era vocês conseguirem baixar os salários para ganharem competitividade. Assim já vendiam mais para fora, diminuíam o desemprego e a economia ajustava mais rápido. E também era importante reformarem o Estado para libertarem recursos para o sector privado, aquele sector que produz coisas que se podem vender.

- Isso não dá para fazer, por isso é que digo que o ajustamento é impossível. O Ricardo Araújo Pereira até lhe chama “injustamento” pois ajusta pouco e injustiça muito.

- Ehehe, engraçado esse jovem, já vi uns vídeos dele no youtube. Não percebo nada de português mas as caretas que ele faz chegam para me provocar umas gargalhadas. Repare, Pedro, se o ajustamento se transformou num injustamente a culpa não é minha. A responsabilidade de dividir o mal pelas aldeias é vossa.  

- É difícil, cada um puxa a brasa à sua sardinha e não dá para discutir racionalmente. O ambiente está tão tenso que já andam todos a distribuir insultos. O ex-Presidente quer levar o Presidente a Tribunal, o Catroga quer fazer o mesmo ao ex-Primeiro-Ministro e este anda prestes a bater em alguém.

- Já ouvi dizer, o Schäuble contou-me. Divertida, aquela entrevista…

- Falo a sério! A Constituição não deixa mexer nos direitos adquiridos e toda a gente quer cortes na despesa pública desde que sejam feitos no vizinho do lado. Resumindo, precisamos de outra solução. Estava a pensar nas eurobonds, aproveitando os vossos juros mais baixos, ou num perdão de dívida, ou num “Plano Marshall” que dirigisse investimentos dos países do norte para os países do sul. Sei lá, qualquer coisa que nos desse ar para respirar.

- Repare, Pedro, tudo isso é muito bonito mas implica transferências de dinheiro da Alemanha. E mesmo que eu estivesse a favor, o meu povo está contra e o dinheiro da Alemanha é dos alemães, não é meu. E mesmo que os alemães estivessem a favor, outros povos da Europa estariam contra. E não sei se sabe mas nós também temos um Tribunal Constitucional com mau feitio. E também temos problemas sociais. E também temos pobres. E também…

- Mas Ângela, isto não se aguenta, vocês podiam pelo menos permitir que tivéssemos um défice maior. Isso dava-nos uma certa margem para não esmagarmos a economia.

- Pedro, um défice maior significa uma dívida maior, e uma dívida maior obriga a mais empréstimos. Os mercados não vos querem emprestar mais dinheiro e, como eu acabo de lhe dizer, os contribuintes alemães também não. Sabe, vocês acusam-nos de querermos liderar a Europa mas a verdade é outra. Os países do sul é que queriam que nós liderássemos, e pagássemos, a Europa! E nós não estamos para aí virados.

- Mas o ambiente está terrível e muitas figuras públicas apelam à revolta. As pessoas não aguentam mais e qualquer dia começam a partir coisas e a aderir a partidos extremistas.

- Como fizeram os gregos? Parece-me uma boa ideia. Pelo menos no caso dos gregos deu bom resultado como toda a gente sabe.   

- Que cinismo! Está a colocar-me entre a espada e a parede. Assim vou ser obrigado a tomar medidas drásticas, talvez até dar um grande calote e não pagar dívidas nenhumas. E isso seria a desgraça de toda a zona euro.

- Não era bom para ninguém mas vocês eram os primeiros a sofrer e aqueles que sofreriam mais. Ficavam sem financiamento externo e tinham de abandonar o euro. Se o Pedro acha que isto está muito austero, experimente sair do euro para ver o que é um “injustamento” a sério.

- Não é verdade. Quando pedimos o resgate até podia ser como diz, mas agora, se não pagarmos os empréstimos e os juros, as nossas receitas já dão para todas as outras despesas. Podemos dar um calote e arriscar perder o crédito, pois o que cobramos em impostos dá para pagar os salários e pensões. Tudo isto sem sair do euro e tudo isto provocando uma grande confusão nos países ricos do norte.

- Já percebi, vocês vão dar um tiro na cabeça e rezar para que o ricochete da bala provoque ferimentos em terceiros. Deixe-me fazer-lhe umas perguntas: ainda não percebeu que uma grande parte da dívida está nos vossos bancos e na vossa Segurança Social? Independentemente disso, acha mesmo que pode dar um calote a estrangeiros, gerir o orçamento de estado com base nas receitas próprias e manter-se no euro como se nada fosse? Acha que o financiamento externo se destina apenas ao Estado? Ainda não percebeu que as empresas portuguesas, e famílias, e bancos, também vivem de crédito estrangeiro? Não entende que se não pagar as dívidas ninguém vos empresta nem mais um tostão e a economia do país estoura toda ao mesmo tempo?

- Mas toda a gente diz que a nossa dívida é impagável e que vamos precisar de um perdão.

- E é verdade, a vossa dívida é impagável e vão precisar de um perdão. Mas vai ser um processo organizado e conduzido por nós e só vai acontecer quando vocês puserem a casa em ordem, reformando o Estado e consumindo menos. No fundo, depois de levarem uma lição.

- Mas isso é inaceitável, Portugal é um país soberano e não pode aceitar essa humilhação das lições. Olhe que nós podemos preferir a máxima do Che e arriscar morrer de pé em vez de passarmos uma dúzia de anos de joelhos.

- Isso é mais do que Che! Eu diria que é o dobro de Che, mais concretamente, ché-ché! Mas tem razão, claro que podem fazer isso. Aguardo com expectativa o dia em que o Pedro ou o TóZé obtenham a coragem necessária para o hara-kiri 

- Isso é bluff seu, pode não ser um suicídio. Se eu assumir uma posição de força até é provável que a Europa flexibilize as exigências. Ninguém tem a certeza se é pior para nós dar um murro na mesa a sério ou continuar nesta morte lenta.

- Pois não, tem razão. Olhe, Pedro, não sei mais que lhe diga. Arrisque, homem! Arrisque…


sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Breves notas sobre a crise e sobre o orçamento de estado (5)



“As pessoas são mais importantes do que os números”, diz o idealista de esquerda enquanto tenta calçar um sapato 37 no seu pé 43.


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Breves notas sobre a crise e sobre o orçamento de estado (4)



Alguns dos críticos deste governo dizem que não se podem gerir as contas do Estado da mesma forma que se gerem as contas de uma família. Estimados críticos, vocês estão enganados. A única diferença entre uma família e um Estado sem moeda própria é que numa família sem dinheiro ainda pode subsistir o amor.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Breves notas sobre a crise e sobre o orçamento de estado (3)


O Pedro tem 2 casas mas o patrão reduziu-lhe bastante o salário nos últimos tempos. Por isso, com vista a diminuir as suas despesas, resolveu cortar a internet na casa de praia e o telefone na casa da cidade. O Ângelo, amigo do Pedro, já lhe disse que aquele caminho não tem jeito nenhum, que assim vai acabar por ficar com 2 casas inabitáveis e que era muito melhor vender uma delas e concentrar os recursos na outra. O Pedro, confrontado com a sugestão, justificou-se. Pelos vistos o Paulo, um outro amigo do Pedro, especialista do mercado imobiliário, ficou de avaliar a situação para lhe dizer se seria melhor vender a casa de praia ou a da cidade. O problema é que nunca mais lhe disse nada e por isso ele teve de ir poupando algum sem mais demora! Além disso, parece que existem uns problemas legais relacionados com as casas e o Joaquim, um vizinho da cidade que percebe bastante de leis, já o avisou que não é certo que os tribunais o deixem vender o que quer que seja. A situação está confusa e o Pedro já está a pensar em novas soluções. A casa de praia é perto do mar, talvez mande cortar a água. E a da cidade é virada a sul e soalheira, talvez mande cortar o gás.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Breves notas sobre a crise e sobre o orçamento de estado (2)


Ponto 1 – o Estado faliu
Ponto 2 – o Passos Coelho aldrabou na campanha eleitoral
Ponto 3 – o Ponto 2 não altera o Ponto 1

Breves notas sobre a crise e sobre o orçamento de estado (1)


Em primeiro lugar vou contar-vos um segredo: o Estado faliu. Mas é normal que ainda não se tenham apercebido uma vez que isso aconteceu há apenas 4 anos.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

E não sobrou um tostão furado



O Deputado João Galamba esboçou uma adaptação do célebre poema que muitos atribuem ao Brecht mas que afinal não é do Brecht.
Como este exercício tem sido repetido por muita gente nos últimos tempos resolvi contribuir para a discussão, deitando a minha acha na fogueira que muitos dizem ter sido acesa pelo Brecht mas que afinal não foi acesa pelo Brecht.



E não sobrou um tostão furado

Primeiro lançaram o novo sistema retributivo da função pública
e eu não disse nada porque conheço muitos funcionários públicos e acho que são boas pessoas

Depois construíram um Estado grande e omnipresente
e eu não disse nada porque tenho preocupações socias e não gosto de ver ninguém desamparado

Depois enfiaram o país numa moeda controlada por estrangeiros
e eu não disse nada porque dizem que os estrangeiros são mais inteligentes do que nós

Depois construíram SCUTS
e eu não disse nada porque aprecio coisas de borla

Depois fizeram estádios
e eu não disse nada porque gosto muito de futebol

Depois plantaram ventoinhas gigantes pelo país
e eu não disse nada porque sou amigo do ambiente

Então vieram-me ao bolso com violência
e nessa altura fiquei pior do que estragado, fiz um barulho do caralho e fui desenterrar textos que julgava do Brecht mas que afinal não são do Brecht