sexta-feira, 28 de março de 2014

Carta aberta a José Rodrigues dos Santos



IL.mo e Ex.mo Senhor José Rodrigues dos Santos,

É com indisfarçável dor que sou obrigado a dirigir-lhe publicamente esta missiva pois, tendo já desfrutado de prazenteiras emoções despertadas pela leitura dos seus livros, nenhuma delas consegue compensar a revolta que senti no passado Dia do Senhor. Orgulhei-me patrioticamente perante a possibilidade de Cristóvão Colombo ser português, fui tocado por prazeres espirituais ao vislumbrar a existência de Deus numa fórmula de Einstein, senti até um ligeiro intumescimento quando tentei imaginar o sabor de uma sopa de peixe cozinhada com o leite das mamas da estudante Lena! Por tudo isso lhe agradeço. Não posso no entanto deixar de o confrontar com as inadmissíveis perguntas que dirigiu ao Eng. José Sócrates durante o comentário semanal do nosso ex-primeiro-ministro. Quem julga o senhor que é para se arrogar do direito de fazer perguntas? Algum jornalista? Caro Rodrigues dos Santos, coloque-se no seu lugar. Você está ali para ouvir e aprender, não para questionar. Você é a Judite que aumenta o brilho do Professor, o Drulovic que faz cruzamentos para os golos do Jardel, o foco de museu que realça a grandiosidade da obra de arte. A sua função é abrir as nuvens para deixar que a estrela nos ilumine o presente, não é perguntar à estrela por que razão não nos iluminou no passado.

Sei que por vezes é difícil conter a curiosidade e que o meu caro amigo pode ter sido contagiado pelo espírito de investigação do seu alter-ego Tomás Noronha. Mas se é esse o caso, deve pelo menos ter o cuidado de se informar e de fazer um questionário adequado. Não sabe que no tempo do Eng. Sócrates nunca foi aplicada austeridade? Pois devia saber. É imperdoável que confunda a austeridade deste governo, traduzida no corte de despesas devido à falta de graveto, com o rigor orçamental do governo anterior, baseado no corte de despesas devido à falta de pilim. Foi para fazer estas confusões grosseiras que andou a estagiar na BBC? E o que dizer da sua perfídia, ao insinuar que o ex-primeiro-ministro deixou as contas públicas desorçamentadas. Primeiro acusam-no vilmente de aldrabar o percurso académico e de nunca ter alcançado o grau de engenheiro, agora vem o senhor e lança-lhe a acusação de ter promovido grandiosas engenharias financeiras! Se me explicar como é que uma pessoa que não é engenheiro consegue fazer engenharias, talvez eu passe a acreditar que não é a pura má-fé que guia os seus passos em todo este caso. Desconfio que o motivo que o levou a falar da herança contabilística do anterior governo está relacionado com as gigantescas dívidas escondidas em Parcerias Público-Privadas e nas contas das Empresas Estatais. Que vergonha, Rodrigues dos Santos. Não saberá o meu caro amigo que essas operações foram realizadas em período pré-Manifesto dos 70, quando a dívida promovia o crescimento económico, e não no período pós-Manifesto dos 70, quando a dívida é um travão ao crescimento económico? Se não fosse um pivot parcial, ignorante e mal informado, saberia que essa herança em forma de passivo é, na verdade, puro crescimento camuflado à espera de despontar. No fundo, um gigantesco bónus deixado a este governo, que só a proverbial maledicência do povo português consegue transformar numa canga sobre o futuro do país.

A carta vai longa e tenho de me despedir. Mas não sem antes lhe recomendar com veemência: nunca deixe que um arquivo estrague uma boa história!


Tenho a honra de ser
De V. Ex.ª com muita consideração e um puxão de orelhas

Aníbal Éter

quarta-feira, 26 de março de 2014

A comovente sinceridade de um ancião


August Macke, Vegetable Fields (1911); Kunstmuseum, Bona


"Lembro-me de que sendo Schmidt chanceler e eu primeiro-ministro, e estando Portugal numa situação financeira difícil, fui a Bona, então capital da Alemanha, com o ministro das Finanças Vítor Constâncio. Uns minutos depois, estando já Vítor Constâncio a expor a situação financeira, de que eu percebia tão pouco, pedi licença a Schmidt para ir dar uma volta e ver um museu. Assim aconteceu."

Mário Soares, DN, 25/03/2014


quinta-feira, 20 de março de 2014

O meu inter-rail; 5º capítulo: "Les riches”



A viagem para Nice correu bem, obrigado. Depois de umas horas sentado no chão da Gare de Cerbère (eu e mais umas dúzias de outros interrailers piolhosos) apareceu o comboio que me iria levar até à cidade mais importante da Côte d'Azur, a zona indicada para gajos com uma apresentação cuidada como era a minha. Foi nesse momento que teve lugar o primeiro contacto com o tipo de carruagem em que iria fazer 90% das viagens e que me permitiram executar o plano de austeridade assente em dormidas nos comboios sem excessivo sofrimento. Não sendo pessoa de me entregar facilmente ao costume português de sentir muitos sentimentos admito, envergonhado, que foi amor à primeira vista. Amor pela carruagem em si e não por nenhuma pessoa que estivesse lá dentro . Amor, aliás, que apenas nasceu por não estarem muitas pessoas lá dentro. Vou explicar melhor partindo do princípio de que se vocês fossem muito inteligentes estavam a ler bons textos de bons escritores e não esta coisa que vos ponho à frente. As carruagens-tipo do meu inter-rail não foram aquelas a que eu estava habituado em Portugal, conhecidas na gíria técnica como “open” (ou seja, sem divisórias) e caracterizadas por um corredor central ladeado por assentos, mas sim aquelas a que chamam “compartment car” e que são constituídas por um corredor lateral, ligado por portas de correr a vários compartimentos de 6 lugares (3 passageiros num dos lados, sentados cara-a-cara com outros 3 passageiros no outro).



Corredor lateral, o local indicado para fumar uns cigarros com os restantes interrailers ; em caso de partilha do compartimento fechado com terceiros, é de bom tom visitar este espaço aquando da libertação de flatulências



Em alguns casos os assentos eram fixos, permitindo que duas pessoas se deitassem, e noutros eram reclináveis, conseguindo-se encostar cada um deles ao que lhe ficava em frente e permitindo que não duas mas sim três pessoas se deitassem. Uma vez que o comboio não tinha muitos passageiros consegui ficar sozinho numa das divisões, o que permitiu que dormisse o sono da beleza com total conforto (por me conseguir esticar ao comprido) e com total despreocupação (por saber que a porta fechada e as sapatilhas malcheirosas colocadas em posição de cão de guarda me protegeriam dos ladrõezecos e das ninfomaníacas suecas). Este surpreendente oásis de espaço acabou por se revelar a regra nas minhas viagens, o que muito contribuiu para a felicidade do cartão de crédito do meu pai e para a infelicidade de albergueiros, hospedeiros, estalajadeiros, e outros espelunqueiros em geral.



Compartimento com lugares reclináveis; se baixarmos totalmente os 6 assentos conseguimos transformar a divisão numa cama única onde podem dormir 3 pessoas paralelamente à janela; se não os baixarmos pode dormir 1 pessoa de cada lado, perpendicularmente à janela; se viajarem 6 pessoas no compartimento, ninguém dorme e é uma grande merda



Tendo chegado a Nice de manhã cedo e verificado que a melhor opção para prosseguir para leste seria apanhar o comboio das 8 da noite com destino a Roma, decidi ocupar umas horas desse dia na cidade-estado do Mónaco*. As possibilidade de diversão que se encontravam ao alcance da minha carteira no caríssimo Principado eram, à primeira vista, mais reduzidas que as saias das putas dos bordéis de Matosinhos em dias de atracagem de cargueiros no Porto de Leixões. No entanto, com alguma imaginação, foi possível preencher o tempo de uma forma agradável e sem necessidade de estuporar quantidades homéricas de francos franceses (se a memória não me falha um franco francês valia aproximadamente 30 escudos). Decidi desde logo que iria levar a cabo uma das “turistices” mais parolas do infindável universo de “turistices” parolas que existem no mundo: percorrer a pé todo o Circuito de Fórmula 1, túnel incluído. Podem gozar à vontade mas para um ex-viciado em F1Grand Prix (um jogo de computador dos anos 90) era irresistível a tentação de fazer aqueles 3,34 kilómetros (com k, já sabem como é; quem não souber, que vá ler o 1º capítulo) pelas ruas dos quartiers de Monte-Carlo e La Condamine. Comecei na recta da meta, virei à direita na Sainte Devote, a primeira curva da prova (onde numerosos gajos se espetam logo na primeira volta, 4 segundos depois da partida, numa notável ejaculação precoce automobilística), subi a Avenue d'Ostende até ao Casino, parei uns minutos a descansar no jardim que aí se encontra, virado para o luxuosíssimo Hôtel de Paris e assistindo a numerosos facholas a abandonarem as suas inacreditáveis viaturas no meio da rua para que os impecáveis porteiros as estacionassem devidamente, retomei o percurso até à famosa curva-cotovelo (a mais lenta de todo o campeonato de Fórmula 1, abordada a menos de 50 Km/h),  


A curva mais lenta de toda a época de F1, uma homenagem dos monegascos à Alheira de Mirandela


continuei até ao túnel onde os suicid… pilotos, depois de serem atingidos por um primeiro choque visual provocado pela súbita mudança da luminosidade mediterrânica para a escuridão do buraco e antes de serem atingidos por um segundo choque visual provocado pela súbita mudança da escuridão do buraco para a luminosidade mediterrânica, atingem uma velocidade superior a 250 km/h, atravessei-o, dei um delicioso mergulho a partir de um dos paredões do porto, que se encontra logo à saída do túnel (informo não ter sido uma cena “à puto da Ribeira”, uma vez que o paredão em causa estava dotado de uma escada de ferro de acesso ao mar e de um chuveiro de água doce), sequei-me ao sol enquanto observava a entrada e saída de iates GCC (Grandes Comó Caralho), prossegui para a chicane** que obriga os pilotos a travar a fundo logo a seguir a levarem com o segundo choque visual no focinho, entrei no cais onde atracam os já referidos GCC´s e onde é possível espreitar para dentro dos mesmos (e ficar, rápida e inevitavelmente, com uma pasmada cara de lorpa), e terminei a parola “turistice” na zona da piscina, dando descanso às pernas e observando as monegascas em bikini (por forma a manter a cara de lorpa, não fosse dar-se o caso de ocorrer um desvanecimento da mesma, o que seria uma afronta às gentes da terra).



O X a vermelho marca o sítio onde dei um mergulho; espero que consigam ver bem onde está o X


Cumprido o plano inicial, avancei para um almoço de iguarias locais (um BigMac menu, se bem me lembro), marimbei-me para o Musée Océanographique, que até tinha sido dirigido pelo Jacques Cousteau (“e como lhe custou essa direcção!”, diria o Fernando Mendes no “Preço Certo”, lançando um olhar às pernas da Lenka) e optei por visitar o túmulo da Grace Kelly, localizado na mesma Igreja onde, pelo casamento, se tinha transformado em Princesa do Mónaco no ano de 1956. Ainda cheirei a laje para tentar captar as feromonas de fêmea que tinham desorientado os córtex cerebrais de um Príncipe, de vários actores bem-parecidos (Clark Gable, James Stewart, Cary Grant, Frank Sinatra, …) e, segundo alguns estudiosos da 7ª arte, do próprio realizador Alfred Hitchcock, mas, infelizmente, cheirava apenas ao produto de limpeza utilizado para manter a mármore sempre a brilhar. Desiludido, dei por encerrada a visita e abandonei aquele éden de riches, regressando à cidade de Nice. Resumindo a jornada monegasca, posso afirmar sem medo que foi uma excelente não-aventura de condução de Ferraris, Bentleys e Lamborghinis pelas curvas do Principado, uma inesquecível não-diversão numa festa privada regada a champagne a bordo de um iate de 30 metros, uma requintada não-experiência de baccarat chemin-de-fer no pano verde do Casino de Monte-Carlo e uma soberba não-degustação de um jantar no Le Louis XV, um três estrelas Michelin liderado pelo chef Alain Ducasse onde, rezam as lendas, repousam mais de meio milhão de garrafas dos melhores vinhos do mundo. Como podem ver, tudo correu pelo melhor. O Mónaco foi também o local onde percebi a sanha persecutória do fisco português em relação à classe média: não é nada pessoal, é mesmo por falta de alternativas que se enquadrem no que normalmente chamamos de “realidade concreta”. Queriam que o Ministério das Finanças perseguisse quem? Os pobres que não têm onde cair mortos? Ou os ricos que se podem facilmente pirar para estes paraísos fiscais à beira-mar*** onde nem sequer existe IRS? Tenham juízo e paguem mas é o caralho dos impostos caladinhos. E já que falo nas muitas coisas que por lá aprendi nas poucas horas em que por lá andei, fica aqui, em jeito de despedida, mais uma bonita história: lembram-se do filme “Os diamantes são eternos”, com o Sean Connery a fazer aquelas piadinhas de merda maravilhosas no papel de James Bond? Quando vi o filme não consegui entender uma delas. Sendo eu um grande fã e não existindo nessa altura internet para investigar essas coisas, fiquei muito, muito triste! Recordo-vos a cena, entre o agente secreto 007 e a contrabandista de diamantes Tiffany Case:  

Tiffany Case: “Não existe um Mr. Case. O “T” é de Tiffany.”
James Bond: “Tiffany Case?! Que nome elegante!”
Tiffany Case: “Eu nasci lá! [referindo-se à famosa joalharia Tiffany´s] No 3º andar, enquanto a minha mãe comprava um anel de casamento.”
James Bond: “Sorte a sua não ter sido na Van Cleef & Arpels...”

Só no Mónaco, vários anos depois, especado em frente à montra da luxuosa joalharia Van Cleef & Arpels, consegui perceber a puta da piada! E como bónus, em jeito de revelação, apercebi-me definitivamente do carácter de fim-de-mundo do simpático país em que tinha nascido. Digam lá se não foi uma bonita epifania…


(continua) 


* fica a menos de 20 km de Nice e há comboios e autocarros que nos levam lá; ainda pensei em roubar um carro para me deslocar por uma das 3 corniches (não confundir com cornices, estou a falar de estradas) mas depois lembrei-me da Grace Kelly (do acidente fatal, não do bonito picnic com o Cary Grant no filme “To Catch a Thief”) e desisti da ideia (uns anos depois voltei a visitar a Riviera e acabei por conduzir pelas famosas corniches, mas foi num carro alugado meio foleiro e em termos de glamour foi assim um bocado uma merda).



Eu e a Grace Kelly sentados num Alpine Sports Roadster ; ao fundo, o Mónaco





Nesta foto ela trocou-me pelo Cary Grant derivado ao facto de eu lhe ter dito que as costelinhas estavam mal passadas! Gajas…



** sequência de curvas que tem o objectivo de forçar os pilotos a diminuírem a velocidade; não confundir com chicana, aquela coisa em que os deputados se enredam desavergonhadamente, uns por serem uns peçonhentos e outros por estarem verdadeiramente convencidos que é assim que se desenvolve a actividade de “fazer política”.

*** embora um apartamento no Mónaco custe vários milhões (há quem fale de um preço por m2 de 50.000 dólares), dá sempre para rentabilizar a varanda no fim-de-semana do Grande Prémio de F1 (dependendo da vista e da área pode render uma pequena fortuna). 

 

quinta-feira, 13 de março de 2014

estruturadores reestruturando a estrutura



A única maneira segura de limpar um campo de minas, é conseguir convencer os militares que participaram no trabalho de colocação dos engenhos a participarem posteriormente no trabalho de remoção dos mesmos. Esta grande verdade militar, que só não foi desenvolvida por Sun Tzu por manifesto esquecimento, nem sempre pode ser aplicada devido à ausência de espírito de colaboração de alguns soldados ou, em certos casos, à circunstância de eles já não se encontrarem vivos. Felizmente para nós, alguns dos valentes compatriotas que minaram as nossas finanças e economia com dívidas explosivas ainda se encontram de boa saúde e com vontade de participar no difícil e arriscado trabalho de desminagem que está em curso. É assim de louvar o recente “Manifesto pela Reestruturação da Dívida”, onde algumas das personalidades que nos foram dizendo nos últimos anos que precisávamos de pedir empréstimos para fomentar o crescimento, nos dizem agora que só podemos crescer se não pagarmos esses empréstimos que pedimos.

Sabendo que a característica má-língua dos portugueses se prepara para acusar estas figuras de altíssimo nível de terem o secreto desejo de dar um baixíssimo calote, consultei o dicionário com o intuito de iluminar de sabedoria as mentes de tão ignorante povo. Ficam pois desde já a saber que “reestruturar” não é mais do que estruturar novamente e que “estruturar” é apenas o acto de dotar algo com uma estrutura. Para melhor entenderem o que está em causa tentem lembrar-se da vossa casa: quando tomaram a decisão de a construir tiveram de chamar um projectista que a dotasse de uma estrutura. Imaginem agora que a vossa família cresce e que por isso se torna necessário acrescentar-lhe um novo piso com mais quartos. Quem é a pessoa indicada para tratar desse processo? Um novo profissional ou o mesmo técnico que a desenhou de raiz e que por isso sabe com exactidão onde se encontram e como estão construídas as fundações, sapatas, vigas, pilares, paredes mestras e muros de suporte? Naturalmente que, estando ele vivo e mostrando disponibilidade para o trabalho, a vossa escolha recairá no projectista inicial. Assim, o homem que no passado estruturou a coisa tratará agora de a reestruturar. O que acontece com este Manifesto, para grande sorte do país, é bastante parecido. As assinaturas de João Cravinho, pai das SCUT e grande promotor de PPP e de mega-projectos, e de João Galamba, ferrenho defensor do investimento público e um dos principais conselheiros do ex-Primeiro-Ministro José “aumentamos o défice porque quisemos” Sócrates, são a prova de que os portugueses podem estar descansados. Quem estruturou a dívida não se esquiva à difícil tarefa de a reestruturar, os nossos projectistas estão vivos e com vontade de trabalhar.            

quinta-feira, 6 de março de 2014

O João e o Adão



Dizia Oscar Wilde que a coerência é a virtude dos imbecis. Talvez por acreditarem nessa teoria e por não gostarem de insultar ninguém, alguns dos twitteiros que sigo têm dedicado algum do seu tempo a debater a suposta falta de coerência de outro twitteiro que também sigo. Uma vez que todos eles são importantes na difícil tarefa de aliviar os momentos de tédio do meu dia-a-dia, pretendo dar o meu contributo à discussão, batalhando pela harmonia universal and the pursuit of happiness. Pelos vistos o twitteiro A, conhecido pela empenhada defesa das ideias liberais, desenvolve actividade de investigação sob a alçada de recursos públicos (ou, nas certeiras palavras de Margaret Thatcher que Deus a tenha, sob a alçada de recursos do contribuinte). Logo os twitteiros B, C e etc., imbuídos do saudável espírito do anda cá que já te fodo, saltaram com galhardia em cima do twitteiro A, acusando-o de ser um Frei Tomás agasalhado por um manto de contradições e de ter um corte de cabelo démodé. Adiante que se faz tarde e não estou aqui para empatar: pode um convicto liberal ganhar a vida a soldo do orçamento de Estado sem peso na consciência? Caros amigos e inimigos, a minha resposta é rápida: pode. E se por acaso sentir um remorso nocturno a atrapalhar o necessário repouso deve procurar com urgência um psicólogo que lhe desenrodilhe a linha do pensamento. O debate intelectual de ideias não pode substituir nem condicionar a primitiva actividade de obter honestamente o pão nosso de cada dia e a manteiga para o barrar. Um liberal pode comprar livros do Milton Friedman e do Hayek com o dinheiro que ganhou a trabalhar para o Estado e um socialista pode comprar livros do Keynes e do Karl Marx com o dinheiro que ganhou a trabalhar nas empresas do grupo Mello ou no Banco Espírito Santo. Usando a conversa da treta do Prós & Contras e os finais de telejornal do Rodrigo Guedes de Carvalho, qualquer um deles pode lutar por mudar o “paradigma” do país e do mundo mas qualquer um deles continuará a precisar de comer enquanto o “paradigma” do país e do mundo se mantiver tão estático como a defesa do meu FCP que Deus o tenha também. Na minha maneira de ver as coisas com os olhos da cara e não com o olho cosmológico de Henry Miller, cada pessoa deve analisar as oportunidades que existem no contexto da totalmente legal legalidade e escolher as que considera melhores para a sua vida. Tudo isto sem levar em linha de conta as tais ideias liberais que pode considerar adequadas mas que deverão ser reservadas para o debate ideológico e prática política. Aliás, o maior problema destas discussões é que o próprio conceito de liberalismo anda mais distorcido que o espelho de uma anoréctica. Se usarem também os vossos olhos da cara, perceberão com facilidade que todas as análises do liberalismo que se desviem das clássicas características do “liberalismo político” e do “liberalismo económico” são uma bela merda de análises, construídas apenas para vos baralhar os entrefolhos do cérebro. Ide ler meia dúzia de coisas sobre o pensamento de John Locke e de Adam Smith, os supostos pais desses dois liberalismos, e passareis a mandar abaixo de Braga muitos dos gajos que andam para aí a evangelizar. O primeiro lutou contra o absolutismo de direito divino, defendendo que a origem do Poder Político se encontrava no Povo. Querem uma merda mais democrática do que esta em pleno séc. XVII? Afirmou que deveriam ser os cidadãos a delegar os seus poderes no Estado, para que este aplicasse a justiça pública, protegendo a vida, a liberdade e a propriedade de todos. E que essa delegação deveria ocorrer sempre de uma forma limitada para impedir abusos e tiranias. Que atire a primeira pedra o absolutista prepotente que estiver contra o liberalismo político. Quanto ao Adam Smith, o homem da “mão invisível” (a que está relacionada com a economia de mercado e não a que vocês usam para apalpar gajas em discotecas apinhadas), ficou famoso por defender o mercado livre e a liberdade económica. Mas não empreendeu (bonita palavra para utilizar com este senhor) essa defesa por ser um individualista feroz mas por considerar eticamente superior o princípio da cooperação voluntária entre os homens e porque, na sua análise, o liberalismo económico permitiria um maior crescimento económico de toda a sociedade, melhorando os rendimentos dos pobres sem ter que se confiscar o património dos ricos. Note-se que o conjunto dual de ambos os dois (João e Adão) considerava como insubstituível o papel do Estado nas áreas da Defesa, Justiça, elaboração de Leis e construção de Obras Públicas. Ou seja, pela lógica dos que não gostam de insultar ninguém, o twitteiro A, liberal, nunca poderia ser militar, magistrado, polícia, ministro das obras públicas ou deputado, e todas essas funções ficariam reservadas para os defensores do socialismo (que tratariam de perpetuar o mesmo para todo o sempre). Aliás, se o twitteiro A tivesse tido o azar de nascer num país totalmente estatizado (em que toda a actividade económica está nas mãos do Estado), não poderia exercer nenhuma profissão e teria de emigrar! Mas como normalmente nesses países as fronteiras se encontram fechadas, o nosso twitteiro estaria bem fodido. Caros amigos e inimigos, o que os liberais querem é que o Estado se retire progressivamente de algumas áreas, o que permitirá a diminuição dos seus gastos, o que permitirá a diminuição dos impostos que cobra às pessoas e às empresas, o que permitirá um aumento do investimento, o que permitirá um crescimento da riqueza nacional, o que permitirá que algumas empresas e instituições privadas aumentem os seus orçamentos de investigação, o que permitirá que o nosso twitteiro A tenha novas oportunidades para ganhar a vida. E por muito barulho que façam, não me parece possível alterar a ordem dos acontecimentos acima apresentada. “Ah, mas ó Aníbal, isso é impossível porque a cultura portuguesa é a da cunha e do amiguismo, o Estado está tomado de assalto por tachistas e os partidos políticos são um antro de filhos da puta que não vão decidir contra os seus próprios interesses”. Pois, é capaz, por isso é que eu, que até me considero liberal, olho com simpatia para a troika e para a Merkel e para o Tratado Orçamental e para a inscrição dos limites do défice e da dívida na Constituição e ainda gostaria que nos obrigassem a gravar numa pedra da Assembleia da República um tecto máximo para a carga fiscal e outro para o peso das despesas públicas no PIB. No fundo, já que o nosso Estado não imita Ulisses e não se aprisiona a si próprio, que venha alguém de fora e que amarre o sacana a um mastro com cabos de sisal entrançado e duplo lais de guia. Caso contrário as putas das sereias vão-nos continuar a lixar.