terça-feira, 29 de abril de 2014

O meu inter-rail; 7º capítulo: “veni, vidi, vidi”



Da última vez que vos dirigi a palavra estávamos na estação de Termini, no centro de Roma. Em bom rigor, estava eu e vocês não. Aliás, em excelente rigor, eu também já não estava. Embora estivesse estado. Avancemos. Eram apenas 7 da manhã mas o sol, deliciado pela revelação de uma cabeça higienicamente desbastada por um pente 2, já empreendia com vigor, qual Miguel Ângelo perante um bloco de mármore de Carrara, a sua labuta sobre a mesma. Troquei dinheiro, tomei um café para acompanhar o panino que sobrara da viagem e passei na bilheteira para ver os horários. Precisava de me deslocar até Brindisi, um importante porto natural do Adriático, situado, em utilizando os inefáveis mapas “tem-a-forma-de”*, no tacão da bota**. Aí trataria de apanhar um barco até à Grécia (de borla, pois estava incluído no passe do inter-rail) e depois seguiria novamente por terra até Istambul. De acordo com as informações que recolhi na bilheteira e respeitando as decisões que tomei após uma longa negociação comigo próprio, tinha 14 horas para fazer o que me apetecesse em Roma, uma cidade onde nunca havia estado. Podia ter optado por lá dormir uma noite, adiando por 24 horas a viagem para sul, mas mantive-me firme, durante a tal longa negociação comigo próprio, na intenção de chegar à Turquia o mais rapidamente possível. 14 horas é um período de tempo que suscita sentimentos divergentes consoante o ponto de vista: para um funcionário público pré-Passos Coelho corresponde a dois dias inteiros na repartição, um verdadeiro suplício de Tântalo; para um recém-chegado a uma cidade grande, famosa e nunca antes visitada, representa um dilema de grandes proporções que consiste em optar por uma postura de viajante ou de turista, diferença que não parece relevante aos olhos do comum dos mortais mas que assume um carácter de vida ou morte quando analisada por escritores, artistas, intelectuais e outros vaidosos em geral. A quantidade de tinta e de saliva que já se gastou nesta “magna” polémica dava para encher as catacumbas romanas depois de salutarmente lá enfiar todos aqueles que a alimentam, eu inclusive. Analisemos a argumentação mais corrente…

“O turista vê e o viajante vive” é um dos chavões mais utilizados por todos aqueles que se julgam viajantes a sério. No entanto, algumas pessoas levam a questão mais a peito e não poupam nas munições. Como por exemplo o realizador Werner Herzog, que afirma sem contemplações: “o turismo é um pecado mortal”. Ou então a famosa escritora de viagens irlandesa Dervla Murphy que, antes de partir, estuda atentamente os guias de viagem por forma a conseguir evitar totalmente todas as zonas frequentadas por turistas (em Roma tinha de se meter no sistema de esgotos! E no actual uma vez que no sistema antigo, a Cloaca Maxima construída pelos Reis Tarquínios***, andam certamente japoneses a tirar fotografias). No nosso país, e analisando a obra do Miguel Sousa Tavares, um gajo que viaja, podemos encontrar este texto ilustrativo da posição da intelectualidade sobre o assunto:

“Uma das pessoas que me ensinou a viajar foi a minha mãe. Ensinou-mo com uma simples frase. A única vez que viajámos juntos, fomos a Roma. Estávamos sentados uma tarde na Piazza Navona, o seu local preferido de Roma. Ela bebia um dos seus inúmeros chás diários e há mais de uma hora que ali estávamos, sentados a contemplar a beleza perfeita da praça (…)  Mas estávamos ali há demasiado tempo, era a primeira vez que vinha a Roma e tinha, logicamente, alguma pressa de seguir caminho e ir ver outras coisas. Sentindo a minha impaciência, a minha mãe disse-me: "Miguel, viajar é olhar." Até hoje, fiquei sempre cativo desta frase e do que ela implica e compromete o verdadeiro viajante.”

Ou seja, o filho Miguel, ainda turista desejoso de ver o que nunca tinha visto, é moldado in loco pela mãe Sophia, já viajante desejosa de viver os locais por onde passa. Entre andar 150 metros e visitar gratuitamente os Caravaggios da Igreja de São Luís dos Franceses, andar 200 metros e admirar sem custos o fresco do Profeta Isaías pintado por Rafael na Basílica de Santo Agostinho, andar 250 metros e ouvir de borla um concerto de órgão na Igreja de Santo António dos Portugueses, e permanecer imóvel numa esplanada da Navona a beber chás a 10 euros a chávena, Sophia opta pelos chás a 10 euros a chávena. E ensina o filho a fazer o mesmo. E quanto a mim, Aníbal Éter. O que é que a minha mãe me transmitiu sobre viagens, além de me ter ensinado a fugir a sete pés de todos os locais que vendam chá a mais do que, digamos, 3 euros a chávena? Regressemos a Termini: naquele momento em que o sol romano aplicava o maço e o cinzel na minha cabeça, fui forçado, pela segunda vez na vida, a escolher uma postura. Uns anos antes, na primeira vez que saí do país sem ser para ir a Vigo, vi-me em Paris no contexto de uma paragem técnica obrigatória para descanso do motorista a meio de uma viagem de autocarro Porto-Hamburgo. Ciente da vastidão da cidade, fui largado perto da Notre-Dame às nove da manhã com a indicação de estar na Place de la Concorde às seis da tarde para se retomar a viagem. Pensais vós que me sentei num café de Saint-Germain-des-Prés a ler o Le Monde com um cigarro sem filtro no canto da boca? É que nem trinta Sophias conseguiriam segurar-me perante a possibilidade de ver ao vivo, de uma forma rápida, atabalhoada e totalmente parola, tudo aquilo que os meus olhos tinham, durante anos, assimilado em fotografias. Comecei na Île de la Cité (onde o belo Filipe IV se aqueceu com uma fogueira alimentada com o último Grão-Mestre dos Templários; dizem que o Rei devia muito dinheiro aos Templários e que resolveu assim a questão, um pouco como se o Passos Coelho enfiasse a Christine Lagarde numa das lareiras de São Bento), passei pelo Hôtel de Ville e pelo Centro Pompidou (à semelhança de algumas pessoas, é muito mais bonito visto por trás do que pela frente), meti-me pela Rua de Rivoli até ao Louvre (onde naturalmente não entrei), fui ver a Ópera Garnier (por fora, claro, que ouvir líricos ocupa muito tempo), caminhei por uma das grandes boulevards até à Igreja de la Madeleine, sentei-me a descansar na Concorde (não resisti a tirar uma foto típica, parecida com esta, que confunde pela perspectiva as alturas do candeeiro, do Obelisco de Luxor e da Torre Eiffel; meu Deus, sou um turista tão ridiculamente previsível que quase fico envergonhado),




percorri os Campos Elísios de ponta a ponta, subi ao topo do Arco do Triunfo para aproveitar uma das melhores vistas de Paris (clichés atrás de clichés, a Sophia teria de fumar o dobro dos cigarros para me conseguir aturar), avancei até ao Trocadéro onde absorvi, à maneira de Hitler em 1940, a engenharia da Torre Eiffel, segui para os Invalides, atravessei a famosa Ponte Alexandre III, seguida do Petit e do Grand Palais e, finalmente, sentei-me no Jardim das Tulherias à espera do autocarro, com as pernas desfeitas e a alma cheia.



Trocadéro, 1940


Vi muito e “vivi” pouco. Fui superficial e absorvi apenas alguns dos pormenores de tamanha beleza. Não entrei sequer em nenhum meio de transporte, uma boa maneira de conhecer as características da população de uma cidade mas não a cidade em si. Poderia ter sido de outra forma? Não. Entretanto já fui mais vezes a Paris e a postura foi diferente, dando lugar a visitas demoradas a museus, lojas e livrarias, passeios a pé em registo de flâneur e alívio do prurido da micose em esplanadas variadas. Mas não é natural que uma pessoa, principalmente se for curiosa, consiga ser viajante antes de ter sido turista e que se sinta feliz a “viver” descontraidamente um local sem ter visto apressadamente todos os outros que se encontram nas redondezas.
Toda esta conversa, como já devem ter percebido, serve apenas para introduzir  a descrição do meu primeiro (e durante alguns anos, único) dia em Roma, em que vi tanta coisa que vocês vão pensar que eu sou um mentiroso do caralho, quando, na verdade, sou do caralho mas sem ser mentiroso. Foi um autêntico veni, vidi, vidi. E, para concluir, vidi! Mas o relato fica para a próxima…

(continua)

  

* existem mapas políticos, mapas físicos e mapas “tem-a-forma-de”

** se a Itália é uma bota, a Suécia é uma pila, a Finlândia é o escroto da Suécia e a Dinamarca é a gotinha de xixi que cai invariavelmente no fim da micção.



Não me perguntem o que é a Noruega uma vez que não sei;
espero sinceramente que não seja nenhuma doença



*** uma dinastia de Reis etruscos


quarta-feira, 23 de abril de 2014

δημοκρατία


Sólon Júnior, Clístenes Júnior e Péricles Júnior comemorando o 2520º aniversário da Democracia Grega



Francisco Assis dedicou a sua crónica no Público à análise das capacidades intelectuais de Pedro Lomba, “um pequeno apparatchik ligeiramente alfabetizado” e de Bruno Maçães, “um robot tecnocrático que escreve tweets patetas num inglês próprio de quem nunca leu Shakespeare”.

Compreendo bem as críticas de Assis a estes dois secretários de Estado e tomo como minhas as suas considerações. Não é à toa que o deputado socialista, à semelhança dos restantes militantes do PS, alerta sistematicamente para a falta de qualidade das escolas estatais e para a necessidade de reformar e liberalizar o sistema de ensino do país. Pedro Lomba é licenciado, mestre e doutorando pela Faculdade de Direito de Lisboa, escola pública onde também foi professor assistente. Não é pois motivo de espanto que deixe muito a desejar em termos de alfabetização. Já quanto ao qualificativo de apparatchik, é evidente que um homem como Francisco Assis não pode pactuar com boys que não conhecem a vida exterior às paredes das concelhias partidárias. Recorde-se que entre a conclusão do seu curso de Filosofia e o início, aos 24 anos de idade, do seu mandato como Presidente da Câmara Municipal de Amarante, decorreram dezenas de semanas, talvez até centenas de dias, em que Francisco Assis laboriosamente construiu uma carreira profissional de sucesso longe dos meandros do aparelhismo. E todos os cargos posteriores que desempenhou, de Deputado à Assembleia da República pelo Distrito do Porto a Deputado à Assembleia da República pelo Distrito da Guarda, passando pelos mandatos de deputado ao Parlamento Europeu e de Vereador da Câmara Municipal do Porto, foram conquistados com base nos saberes que adquiriu nesse longo período de não submissão às dependências ideológico-partidárias. Com um curriculum destes é normal que tenha pouca paciência para os profissionais da política.  

Em relação a Bruno Maçães, que ainda por cima “foi a Atenas dar lições a um povo que já conhece a democracia há mais de 2000 anos”, compreendo ainda melhor a justiça das críticas. Em primeiro lugar não nos podemos esquecer do papel de Francisco Assis como líder parlamentar do Partido Socialista entre 2009 e 2011. Como poderia um homem habituado a conviver de perto com o poliglota José Sócrates não ficar horrorizado com o inglês que o secretário de Estado Maçães trouxe do seu doutoramento em Harvard? Anos e anos a ouvir discursos num inglês e num espanhol próprios de quem leu várias vezes todos os textos de Shakespeare e de Cervantes só poderiam ter como resultado esta tremenda sensibilidade à precisão linguística. Além disso, para um licenciado em Filosofia como é o deputado Assis, é de todo incompreensível que se dirijam quaisquer tipo de considerações ao povo helénico. Como é possível que Bruno Maçães se atreva a tal? Julgará ele que os gregos andaram a inventar a Democracia para se sujeitarem a ouvir coisas com as quais não concordam? Por este caminho chegará o dia em que, discursando no Reino Unido, alertará os compatriotas de Newton para a necessidade de se conformarem com as leis da gravidade!
Péricles, o grande estadista da Grécia Clássica, célebre pela sua serenidade e controlo das emoções, e verdadeiro símbolo do período áureo ateniense, descreveu em poucas palavras o carácter ético e democrático do seu regime: “um Estado administrado no interesse do povo e não no interesse de uma minoria”. Qualquer pessoa que não seja um robot tecnocrático percebe, pela simples visualização dos noticiários, que o povo grego sente que é assim governado, de modo contínuo e constante, há mais de 2000 anos. Aliás, bastaria a Bruno Maçães observar a serenidade que se vive na Praça Sintagma ou o controlo das emoções presente nos derbys entre o Olympiacos e o Panathinaikos, para perceber que vive um Péricles na cabeça de cada grego. E por vezes, quando o grego se encontra com a cabeça rachada a meio, podem até viver dois.   


quinta-feira, 10 de abril de 2014

O Salário Mínimo



Num inesperado movimento contraditório, um ano depois de ter caracterizado a medida como demagógica, Pedro Passos Coelho mostra agora abertura para aumentar o salário mínimo nacional. A satisfação que sinto com esta notícia prende-se essencialmente com dois motivos. Em primeiro lugar contribui para a humanização da Política e de todos os seus agentes. Habituados ao firme rigor e coerência da classe dirigente, os portugueses habituaram-se a ver os políticos como um grupo isolado, afastado e de diferentes características. Um grupo que é formado por “eles” e que se opõe ao grupo que é formado por “nós”. Ao mostrar que também é vulnerável ao erro, à contradição e à duplicidade da palavra dada, o Primeiro-Ministro mostra que os governantes são humanos e igualmente susceptíveis aos defeitos da portugalidade. São boas notícias para a democracia representativa.

Por outro lado, o aumento do salário mínimo na conjuntura actual parece-me uma excelente medida que só peca por tardia. Estando Portugal com uma taxa de desemprego de 16%, um número bastante difícil de decorar, não se compreendia que o Governo não estivesse a fazer todos os possíveis para tentar aumentá-la para 20%, um número redondo e de fácil memorização.
Ainda por cima, como muito bem diz Nicolau Santos no Expresso, patrões que não conseguem pagar um salário mínimo de 500 euros deviam ter vergonha. E, acrescento eu, melhor seria que fechassem de vez as portas das suas empresas, uma vez que Portugal não precisa delas para nada. A D. Alice, costureira com a 4ª classe nas Confecções Arnaldo Bracarense Lda., dispensa bem o empreendedorismo de vão de escada do Sr. Arnaldo. Se ele tiver de fechar a porta por causa do aumento do salário mínimo, ela pode ir trabalhar como investigadora no Laboratório Ibérico de Nanotecnologia. Que por acaso também fica em Braga. Não há qualquer razão para o país se sujeitar aos caprichos e à ignorância saloia deste tipo de empresários.
E quem é que pensa que é o Sr. Bernardino, de Sernancelhe, para se atrever a dizer que preferia trabalhar por 400 euros na única fábrica do Concelho, a estar em casa sem ganhar nenhum? Cuidará ele que lá por estar desempregado e ter já perdido todos os apoios sociais tem direito à liberdade de escolha?
Pobre Sr. Bernardino, não fossem as sábias cabeças das nossas elites, e arriscava-se a uma vida inteira de miséria e de exploração.  



PS - não posso deixar de referir a desilusão que senti quando ouvi as palavras do Bloco de Esquerda, exigindo um aumento do SMN para os 545 euros. Caro João Semedo, isto é valor que se apresente?! Gostava de saber se o senhor deputado conseguia viver dignamente com 545 euros mensais. Tenho quase a certeza que não. É por esta desvalorização permanente do valor do trabalho que Portugal não consegue alcançar a prosperidade que merece. Shame on you!


quarta-feira, 9 de abril de 2014

O meu inter-rail; 6º capítulo: "O gastrocnémio"



De regresso a Nice, desejava utilizar no meu enriquecimento cultural as poucas horas que ainda tinha disponíveis até ao embarque no comboio nocturno para Roma. Mas o que fazer numa cidade em que a principal praça se chama Masséna, em homenagem ao famoso Marechal que andou a fazer turismo militar no nosso país desde o momento em que o invadiu pela 3ª vez até ao momento em que começou a passar fome na zona de Torres Vedras*? Mesmo sendo verdade que devo a esse franciú o “fui guerrilheiro, fui guerrilheiro, fui guerrilheiro no Buçaco / levei um tiro no cu, ainda tenho lá o buraco”, a primeira música que aprendi no recreio da escola primária e que ainda hoje se mantém no meu coração, não me pareceu adequado, por respeito a Suas Altezas Reais D. Maria I e D. João VI, desfrutar das variadas infraestruturas da Place. Num momento de crueldade, ainda me passou pela cabeça sentar-me numa esplanada e pedir um Bife Wellington mas o risco de o garçon**, por manifesta ignorância da sua História, não se sentir ofendido, era demasiado grande para os preços médios da zona.



Este senhor, de seu nome Arthur Wellesley e de seu título Duque de Wellington, atestou na marmita de André Masséna em território português antes de cilindrar o seu superior hierárquico, Napoleão, na Batalha de Waterloo. Curiosamente, repousa num túmulo londrino bastante mais modesto do que o gigante mausoléu parisiense do corso Bonaparte. Sempre “à grande e à francesa” estes baguettes do caralho


Decidi então avançar para o mar, pensando em meter-me na água mais uma vez, dar uma volta na Promenade des Anglais e avaliar no terreno as condições objectivas para o desenvolvimento do projecto “Depurar o intestino no Hôtel Negresco”***. Infelizmente, uns minutos depois, fui atingido pela mão pesada da decepção! A praia é assim tipo uma bela merda e a baía está permanentemente a ser sobrevoada por aviões despejados pelo movimentado aeroporto situado numa das pontas da Promenade. O mar tem o aspecto típico daquela zona, ou seja, maravilhoso, mas para lá chegar é necessário atravessar um areal que em vez de areia tem um godo (será um godeal?) que escavaca os pés de todos aqueles que não andam calçados com aquelas sandálias horrorosas de plástico ou de borracha ou o caralho e que eliminam todo e qualquer resquício de fantasia à humanidade em geral e aos fetichistas tarados em particular. Tentem só imaginar uma praia e um calçadão repletos de gajos e gajas nestes preparos:




Conseguiram? Agora fechem o saco de enjoo com cuidado, deitem-no fora num caixote do lixo e regressem aqui para acabarem de ler esta treta. Como podem adivinhar, fugi daquele inferno à toute vitesse. Passei numa rua comercial do centro para ver umas gajas de tacão alto que me tirassem o mau gosto da boca, recolhi a mochila que tinha deixado pela manhã nos cacifos da gare e sentei-me a descansar enquanto esperava pelo comboio que me deixaria em Roma na madrugada seguinte. Perante as dezenas de pessoas que se encontravam no recinto, lamentei-me da impossibilidade de conseguir desenvolver com um local uma conversa que tivesse início com uma pergunta minha (“as vossas praias não são de areia! o que é aquilo?”), à qual se seguiria a resposta do francês (“pois não, são de godo”), à qual eu replicaria com um sonoro “anda cá que já te fodo”, mas acabei por ultrapassar esse desgosto e entrei na carruagem em paz.

O calor dentro da mesma era totalmente insuportável, fruto de um dia inteiro a armazenar, através da chapa, o sol da canícula mediterrânica. Pedi a todos os santos que fizessem com que a locomotiva arrancasse depressa, permitindo-me aproveitar alguma da aragem que entrasse pelas janelas para começar a respirar normalmente mas, ainda antes desse momento, vi o meu compartimento invadido por duas pessoas. Primeiro entrou um italiano com pinta de italiano, patilhas aparadas em forma de lança pretoriana, pêra e bigode à valete de espadas, e moreno como a pele dos tomates (a pele dos meus tomates pois a pele dos tomates do gajo ainda devia ser mais escura). Devia ter a minha idade e estava a terminar uma viagem de duas semanas, regressando à sua casa em Pisa. Uns minutos depois, encontrando-me já eu a entabular negociações latinas relativas à divisão e organização do espaço a bordo, ouve-se a porta a correr e avança uma loira não muito loira, precedida por um par de mamas que entrou no compartimento um segundo antes do nariz. Uma proeza assinalável visto que deu entrada apressadamente e que o nariz nem era pequeno. Bastou-me olhar para a cara do italiano, que nesse momento se encontrava a olhar para a minha, para perceber que estava a pensar o mesmo que eu: “este calçãozinho e este decote recheados com uma gaja tão boa não se vão atrever a passar uma noite numa cabine fechada (por uma porta e cortinas) com dois malcheirosos totalmente desconhecidos”. Estranhamente, pelo menos sob o ponto de vista de homens que tinham acumulado 20 anos de experiência de vida a sul do paralelo 45, a loira não muito loira não só não fugiu como, sem um pingo de vergonha, se intrometeu rapidamente nas negociações em curso, atrevendo-se mesmo a opinar sobre o assunto com uma postura que poderíamos classificar de inter pares! “Ai a filha da puta!” - pensei eu enquanto lhe tentava analisar o rego das mamas, ciente de que o italiano lhe estava a tentar analisar o rego do cu -, “ninguém ensinou a esta gaja, lá na merda da terra dela, as tímidas maneiras que se pretendem?!”. Pelos vistos vinha da Holanda, um país que fica a norte do paralelo 50, perigosamente próximo do Segundo Círculo do Inferno e do respectivo vale onde é castigada a luxúria.


À esquerda podemos ver o Capitão Thomas Bartholomew “Red” a preparar-se para dirigir um poderoso “seu filho de uma puta vesga das sarjetas de Amesterdão” ao comerciante holandês que se encontra a tomar banho; a fama de libertinagem dos Países Baixos já é antiga.
Fotograma de Pirates (1986) de Roman Polanski


Concluídos os trabalhos preparatórios, já com o comboio em andamento e com uma suave aragem a dissipar o cheiro a perfume da fêmea e o cheiro a testosterona dos machos, ficou decidido que, na hora de dormir e reclinados todos os assentos, o italiano ficaria deitado junto à porta, para poder sair mais ou menos a meio da viagem, em Pisa, sem incomodar ninguém; eu esticar-me-ia paralelamente à janela, para poder fumar uns cigarros em caso de ansiedade tabágica; e a holandesa, com o seu calçãozinho e decote, ficaria no meio. Também me pareceu na altura que assumida a necessidade de deixar o leito da porta para o italiano, seriam por ele utilizadas todas as técnicas argumentativas da Cosa Nostra e da Camorra com vista a impedir que ficasse a moça à janela e eu no meio dos dois a fazer de Rubicão. Talvez pairasse na cabeça do cretino pisano alguma sombra de desejo de mostrar à formosa viajante a inclinada torre. Demasiados jogos e fantasias e fodas mentais para machos que à boa maneira latina estavam muito mais envergonhados do que a sacaninha loira não muito loira. Felizmente, a simpatia e o à-vontade que mostrou foram suficientes para quebrar o gelo todo, dando origem a uma viagem quase tão boa como a curva que apresentava entre o bíceps femoral**** e o gastrocnémio*****. Onze horas após a saída de Nice, preenchidas a conversar, a dormir, a fumar, a dizer adeus ao italiano em Pisa e a comer panini que nos venderam nas estações através da janela do compartimento, cheguei a Termini, no centro de Roma.

   
(continua)


* corre o mito de que todos os estrangeiros saem de Portugal a elogiar a nossa gastronomia mas, na realidade, estes foderam-se.

** em França nunca chamem garçon a um garçon; ficam ofendidos, tem de se chamar monsieur.

*** era mais ou menos inevitável que num destes dias teríamos de ter esta conversa de merda. Afinal, como se satisfazem, num inter-rail, as necessidades fisiológicas masculinas? Ou seja todas excepto a micção uma vez que um homem não perde tempo a identificar e analisar as condicionantes desta actividade. Até porque, a bem dizer, não existem condicionantes nenhumas, mija-se em qualquer lado e ponto final. Mas dar uma cagada… bem, dar uma cagada nem sempre é fácil para um viajante deste tipo, principalmente quando o viajante decide dormir nos comboios e não em edifícios. As casas de banho das estações são uma opção péssima: umas não estão limpas, outras estão limpas mas utilizam o sistema “à caçador”, outras até, estando limpas e possuindo retretes normais, encontram-se a tal temperatura durante o Verão que uma pessoa fica totalmente encharcada ou chega mesmo a desfalecer mal tenha de efectuar um esforço mais acentuado ao nível dos esfíncteres. As dos comboios propriamente ditos não são melhores, conjugando o calor (talvez seja boa ideia recordar que este é um relato dos anos 90 e nessa altura o ar-condicionado não era omnipresente) com a exiguidade de espaço e a falta de higiene. Já para não falar dos bruscos e acentuados movimentos das carruagens e da magna e clássica questão das paragens (é de bom tom, aquando da inexistência de mecanismos de retenção das retretes, não evacuar durante as paragens dos comboios nas estações. No entanto, o desconhecimento sobre as linhas e horários pode levar a que, iniciando inadvertidamente o acto poucos minutos antes de uma escala, não se consiga interromper o mesmo no momento da total imobilização da locomotiva! Estes infelizes acasos originam desagradáveis visões (visões de merda, literalmente) aos passageiros que se encontram nas plataformas das estações no momento em que o comboio retoma a marcha).
Restam as casas de banhos dos sítios onde se vai parando para comer (sítios rafeiros, logo, casas de banho rafeiras) e as incursões clandestinas em hotéis de 5 estrelas mundialmente famosos, onde podemos purgar o nosso interior em sanitários caracterizados por elevadíssimos padrões de higiene, conforto e bom gosto. E desfrutando ainda da mais-valia adicional de conhecer por dentro edifícios de grande valor estético.       

**** músculo da parte posterior da coxa

***** músculo da barriga da perna; uma maravilha para os escanções de gajas