sexta-feira, 6 de junho de 2014

O meu inter-rail; 9º capítulo: vida doce mas não é para todos




Uma arena engalanada de leões sob o olhar vidrado de um Imperador mais ou menos louco (mas sempre sádico) é provavelmente a primeira imagem em que pensam quando vos perguntam acerca de filmes passados em Roma. Se vos disserem que não se podem valer do género cinematográfico peplum, talvez comecem por enviar o vosso interlocutor para o caralho a mais a sua snobeira intelectual, mas, depois de vos ser explicado que um peplum é apenas um filme “espada e sandália” que retrata temas bíblicos ou da Antiguidade, é possível que se acalmem e se lembrem de algumas cenas mais contemporâneas que utilizaram igualmente Roma como pano de fundo. Sem me querer meter na vossa vida, suponho que a memória vos transmitirá, pelo menos, as imagens de uma inocente Audrey Hepburn a passear de scooter nas suas “Férias em Roma” e de uma libidinosa Anita Ekberg a viver “La Dolce Vita” numa majestosa fonte da cidade.
Visitadas as três beldades da rua (Capela Cornaro, San Carlino e Sant´Andrea, caso se tenham esquecido) e não me conseguindo livrar das vulgares tentações do turista, puxei o lastro da curiosidade através do Quirinal*, tomando a direcção dessa famosíssima fonte feita chuveiro pela audácia da voluptuosa loira.



Acqua di Trevi


Anita Ekberg em 2010 ao lado de um fotograma do filme de 1960. É a puta da vidinha…


Roma é uma cidade permanentemente cheia de visitantes espalhados por todos os cantos. No entanto, a concentração de pessoas por metro quadrado junto da Fontana di Trevi é certamente a maior com que nos podemos deparar. É possível que a Capela Sistina sofra de uma enchente semelhante durante as nove ou dez horas em que está aberta ao público mas a obra de Nicola Salvi**, situada num local aberto e não sujeito a horários, consegue ser mais ou menos insuportável durante as vinte e quatro horas do dia. Toda a gente quer visitar a fonte. Paradoxalmente, devido à tradição da treta de atirar a moedinha por cima do ombro, o principal intuito da visita é virar-lhe o rabo.



Na famosa cena do filme de Fellini, o jornalista cor-de-rosa Marcello está tão embasbacado com a actriz Sylvia que fica quase paralisado, não lhe conseguindo tocar. Pelo contrário, o namorado da actriz, pensando que já era corno quando na realidade era apenas meio-corno, consegue posteriormente tocar bem nos dois, presenteando a loira com uma lostra bem assente e o galã com um pêro no focinho. Essa cena de violência, assim como uma grande parte do filme, tem lugar na Via Vittorio Veneto (a poucas centenas de metros da fontana), a agitada rua onde os aristocratas e os famosos se reuniam em descarada esbórnia. Estamos nos finais da década de 50, a miséria do pós-guerra já vai longe e Roma encontra-se invadida por estrelas de Hollywood que gravam os seus filmes nos estúdios da Cinecittà.



Judah Ben-Hur e Messala a caminho da Cinecittà (1958)


A Via Veneto que vemos em “La Dolce Vita” é um caótico corrupio festivo de burgueses, gajas meio-sérias / meio-putas (dependendo do ponto de vista sobre a questão copo meio-cheio / meio-vazio), cronistas sociais e paparazzi em alegre disputa pelo óscar da decadência. A Via Veneto que percorri no meu dia romano mostrou-se, com grande pena minha, uma rua trivial escassamente povoada por alguns turistas endinheirados. Até a vontade que levava de estourar uns milhares de liras*** numa das esplanadas, tentando simular com uma cerveja a pervertida elegância que Fellini conseguiu transmitir, se dissipou na aridez do local. Felizmente, venturosamente, ditosamente e afortunadamente, quando caminhava entre a fonte de Trevi e a Via Veneto tive a sorte de passar (não sei se já tinha referido que foi por sorte) pelo local onde o infeliz colador de cartazes do filme “Ladrões de Bicicletas” corre atrás do ladrão que lhe acaba de roubar a, adivinharam, bicicleta.



Antonio Ricci a tentar apanhar o ladrão; acabará por entrar no túnel Umberto I sob a colina do Quirinal


Encontrar um dos locais cruciais de filmagem da obra-prima neo-realista de Vittorio De Sica a meio caminho entre dois dos locais cruciais de filmagem da obra-prima inclassificável de Federico Fellini foi como descobrir um osso de frango no meio de um esturjão beluga. Ambos os filmes retratam a desgraça mas, a não ser que encaremos a questão sob o ponto de vista do “Sermão da Montanha” e da bem-aventurança da pobreza, a desgraça opulenta em que mergulha a personagem interpretada por Marcello Mastroianni parece mais agradável do que a desgraça desgraçada em que vive a família Ricci. “Ladrões de Bicicletas”, apesar do notório esforço do realizador, nunca provocou grande enternecimento no meu coração de pedra com cobertura de gelo e limalha de ferro. No âmbito da problemática da crise económica e miséria social que o neo-realismo de De Sica pretendeu denunciar (este “de” seguido de “De” é magnífico; e o novo “de” que ainda consegui incluir na explicação?!), nada me consegue comover tanto como a história de Umberto D., o velhinho acompanhado de um cãozinho (tudo neste filme deve acabar em “inho”, sem dúvida), que recebe uma pensão tão baixa que nem sequer dá para pagar o quarto (a senhoria é uma cabrazinha, naturalmente), e que deambula pela cidade de Roma (Panteão, Piazza del Popolo, praça do “Elefante e Obelisco” do Bernini, etc.) em contido desespero.



Umberto D., envergonhado, ensina o cãozinho a pedir por ele em frente ao Panteão


Onde está a APRe! - Associação de Aposentados Pensionistas e Reformados da Dra. Maria do Rosário Gama quando é preciso, caralho?! Choro baba e ranho sempre que vejo este filme, é preciso fazer alguma coisa pelo senhor antes que se me amoleçam as entranhas.

(continua)
(quando voltar espero que já tenham visto o Umberto D., é só ir ao youtube)



* onde se encontra o Palácio de Belém lá da terra

** Nicola Salvi foi um dos arquitectos italianos contratados pelo despesista D. João V para a construção da Capela de São João Baptista. Depois de ter sido montada e exposta em Roma foi novamente desmontada e enviada por navio para Lisboa com vista à sua instalação definitiva na Igreja de São Roque. Consta que o orçamento inicial foi largamente ultrapassado, tendo atingido o valor que normalmente atribuímos aos olhos da cara.      

*** uma lira italiana valia dez vezes menos do que um escudo português e nos anos 90 podíamos ver a cara de Bernini nas notas de 50 000, a de Caravaggio nas de 100 000 e a de Rafael nas de 500 000 liras. Quereriam com isto os italianos fazer juízos de valor e estabelecer termos comparativos? Penso que não, mas vou aproveitar a deixa para entrar nessa pantanosa tarefa de comparar qualitativamente artistas, uma actividade que consegue ser ainda mais ridícula do que andar a fazer comparações métricas (é mais centimétricas) no balneário do ginásio.

Seguindo a proporção monetária das notas de lira, não me é difícil escolher a dedo uma obra de Caravaggio que me mereça o dobro da admiração de uma obra de Bernini seleccionada da mesma forma:



“Relicário da Cátedra de São Pedro” (1653); Bernini; Basílica de São Pedro
Não sei porquê mas não gosto muito disto, merece-me x admiração


“A Vocação de São Mateus” (1600); Caravaggio; Igreja de São Luís dos Franceses
Foda-se, espectacular, merece sem dúvida 2 x da minha admiração 


O problema é que também consigo fazer o inverso:


“A cigana que prevê o futuro” (1594); Caravaggio; Museus Capitolinos
Obra muito importante que revolucionou blá blá blá. Não gosto, leva uma admiração de x


Pormenor de “O Rapto de Proserpina” (1622); Bernini; Galleria Borghese
Vejam bem este apalpão no mármore! Melhor escultura de sempre! 284 x da minha admiração


Acho que já perceberam o meu ponto de vista, ide medir pilinhas que é menos embaraçoso.