sexta-feira, 25 de julho de 2014

O meu inter-rail; 10º capítulo: Popolo, Popolo, Popolo




Tentei explicar, nos capítulos 7, 8 e 9 (clique no “7” para ser reencaminhado para a Estação de Termini; no “8” para visitar uma rua onde moram três beldades; no “9” para se chocar com o péssimo trabalho da APRe! - Associação de Aposentados Pensionistas e Reformados da Dra. Maria do Rosário Gama), de que forma utilizei as primeiras horas do período de 14 que tinha disponíveis para fazer o que me apetecesse em Roma. Deixei-vos na Via Vittorio Veneto, perto da Villa Borghese, cujos jardins atravessei em seguida até à íngreme encosta do Pincio. Desse ponto alto pude observar aquela que é para mim a mais bela praça da cidade, a Piazza del Popolo. Neste momento sinto já o indisfarçável ódio de alguns de vós, prontos para me atirarem à cara nomes de outras praças romanas que são na vossa opinião incomparavelmente mais bonitas, ou mais elegantes, ou mais românticas, ou mais típicas, ou mais outra merda qualquer do que a minha Piazza del Popolo. No entanto, apesar de respeitar imensamente as vossas opiniões e sentimentos, é com pesar que vos informo que a mais bela praça de Roma é (pausa para dar ênfase) a Piazza del Popolo. E consigo sustentar esta minha absoluta convicção apenas naquilo que podemos ver sob a sujeição dos elementos, não levando em consideração nada que se encontre debaixo de qualquer tecto, como por exemplo as pinturas e esculturas de Caravaggio, Carracci e Bernini que se encontram nas Capelas da Igreja de Santa Maria del Popolo ou os interiores do Café Rosati* e do seu rival Café Canova**.
Esta praça, uma grande elipse*** centrada por um obelisco egípicio (devem existir mais obeliscos egípcios em Roma do que em qualquer outra parte do mundo, Egipto incluído****), era um verdadeiro hall de entrada para os muitos viajantes que chegavam à cidade percorrendo a Via Flamínia. E cumpria com eficácias as funções de um hall, distribuindo as pessoas pela urbe através de um tridente encabeçado pelas “igrejas gémeas”.




Via del Babuino (à esquerda), que conduz ao Quirinal através da Praça de Espanha 
Via del Corso (ao meio), que conduz à Praça Veneza e ao Capitólio
Via di Ripetta (à direita), que conduz à zona da Praça Navona através do antigo porto fluvial, do Mausoléu de Augusto e do Ara Pacis




Como apressado turista ranhoso que era não resisti a ser distribuído pela rua da esquerda, atraído pela fama da escadaria da Praça de Espanha e pelo quarteirão das lojas de luxo. Se fosse agora, que sou um descontraído viajante com estilo, deixar-me-ia distribuir pela rua da direita e caminharia em direcção ao antigo Porto di Ripetta e às marcas deixadas pelo divino Augusto: o seu mausoléu e o seu altar de consagração à pax romana, sabiamente instituída através da distribuição de maciças doses de bordoada. Também a mim me apeteceu utilizar os métodos de Augusto, para instituir a paz nos tumultuosos locais que visitei de seguida, nomeadamente a Praça de Espanha, o Panteão e a Praça Navona.
Salvou-se a Igreja de Santo Inácio de Loiola, onde pude admirar em relativo sossego o ilusório tecto “sem fim” e a “cúpula”, quase tão falsa como os funcionários do Estado que justificam as greves com a defesa dos serviços públicos e dos seus respectivos utentes. Também não fui muito esmagado por pessoas de olhos em bico na Basílica de Santo Agostinho e consegui, olhando para a Madonna dos Peregrinos, perceber mais ou menos as ideias de Caravaggio: representar tudo, até motivos religiosas, através de seres humanos normais, não idealizados, utilizando como modelo a populaça da rua, putas incluídas. Unhas com lixo, dentes podres, pés sujos e calejados e rugas vincadas são acolhidos na tela de braços abertos e sem hesitar muito para não atrasar a obra. Caravaggio gostava de trabalhar rápido, precisava de tempo livre para se embebedar, armar confusão, andar à porrada, frequentar rameiras, ser preso com regularidade. “Putridum et foetidum”, pútrido e fétido, baptizaram-no os Cavaleiros da Ordem de Malta depois de o enfiarem, uma vez mais, num calabouço. Claro que conseguiu, uma vez mais também, fugir, mas apenas para morrer novo, como era de esperar. Avancemos… 
 


Madonna dos Peregrinos - pormenor



Sem tempo para experimentar o melhor cappuccino da cidade (Caffè Sant´Eustachio, perto do Panteão), nem o célebre tartufo do Tre Scalini (na Navona), nem a melhor pizza do mundo (Pizzeria da Baffetto*****, perto da Navona), nem a segunda melhor pizza do mundo (La Montecarlo, perto da Navona, propriedade dos filhos dos Baffettos), nem a terceira melhor pizza do mundo (propriedade dos netos dos Baffe… foda-se, estou a brincar, os netos dos Baffettos não têm nenhuma pizzeria; vocês acreditam em cada merda que não lembra nem ao diabo!), avancei para o Corso Vittorio Emanuele II, que percorri em quatro actos: o acto de ir ver os gatos que habitam as ruínas milenares do Largo di Torre Argentina, acrescido dos três Actos da Tosca de Puccini. Muito resumidamente, dá-se início à “obra” na Igreja de Sant'Andrea della Valle, faz-se um ligeiríssimo desvio à esquerda até ao Palácio Farnese e, para terminar, retorna-se ao corso e caminha-se até ao seu final. Aí, já com a visão do Tibre e do Castelo de Sant'Angelo, imagina-se um céu nocturno com estrelas a brilhar e um gajo com boa voz a cantar isto:




(Di Stefano naquela que é, na opinião dos entendidos e também na minha, a melhor gravação da Tosca de todos os tempos)




(aqui é Pavarotti que interpreta Mário Cavaradossi, o pintor que aguarda pelo fuzilamento no Castelo de Sant'Angelo; um grande artista, o tenor dos plebeus)



Terminados os três Actos e limpas as lágrimas, caminhei do Castelo até São Pedro pela Via della Conciliazione, mandada rasgar por Mussolini pelo meio do antigo casario. O choque que os peregrinos aparentemente sentiam quando se libertavam das ruelas e viam o gigantismo da Basílica, da Praça e da Colunata desapareceu com a abertura da nova via “fássista”, uma vez que tudo isso passou a ser perfeitamente visível a mais de meio quilómetro de distância. Dando como quase certo que a surpresa, a admiração e a sensação de esmagamento eram os objectivos que o teatral Bernini pretendia alcançar com os arranjos exteriores de São Pedro, podemos concluir que o Benito fodeu tudo. Literalmente…


Antes de o Benito foder tudo


Enquanto o Benito fodia tudo


Enquanto o Benito fodia tudo


Depois de o Benito foder tudo


Felizmente, todas essas emoções aparecem um pouco mais tarde quando se ultrapassa a porta da basílica, pelo que também eu terei ficado com cara de parvo e de pasmadinho diante dos mais de 200 metros de comprimento do templo. Lembro-me de ter ficado a pensar se um camião TIR conseguiria fazer inversão de marcha na nave principal, se as pias de água benta teriam tamanho suficiente para dar um mergulho, e se seria possível alojar a Torre dos Clérigos debaixo da cúpula e a Igreja da minha freguesia debaixo do baldaquino. A resposta foi sim a tudo, com excepção do mergulho nas pias (mas apenas por uma questão de poucos centímetros). A vontade de humilhar pelo tamanho é de tal ordem que o chão da basílica está preenchido com marcas que indicam onde se situariam as portas de várias outras catedrais do mundo se os seus altares-mor coincidissem com o altar-mor de São Pedro. Por exemplo, só quando vamos mais ou menos a meio da nave principal é que nos aparece a marca da Notre-Dame de Paris, o que significa que poderíamos lá enfiar duas. Embrulha, corcunda…
Foi o Papa Júlio II que lançou este empreendimento descomunal mas o que lá vemos hoje tem pouco a ver com os planos iniciais de Bramante, o primeiro arquitecto que lá trabalhou. Se olharmos para os seus projectos da basílica e principalmente para o Tempietto, o pequeno templo da sua autoria que se encontra na colina do Janículo, a poucas centenas de metros do Vaticano, percebemos rapidamente duas coisas acerca de Donato Bramante: leu exaustivamente os livros de arquitectura de Vitrúvio e era daquelas pessoas que medem e acertam as pontas dos atacadores antes de os apertarem. Não querendo com isto dizer que a sua mente clássica não poderia por si só justificar a perfeição extrema da obra, a correcção das proporções, a precisão matemática, o equilíbrio dos componentes e a harmonia geométrica, parece-me claro que a monumental tara pela simetria só pode ser explicada por uma neurose obsessivo-compulsiva.  




Tempietto - a obra de Bramante 

 


Projecto da Basílica de São São Pedro em cruz grega – o sonho de Bramante




Simetria - o pesadelo de Bramante


Antes de abandonar o território papal, ainda tive a oportunidade de me rir como um perdido perante a dimensão da fila de entrada nos Museus do Vaticano e de chorar como um desalmado quando soube o preço da garrafa de água que tinha acabado de comprar para tentar sobreviver à canícula. De São Pedro segui para a “Roma antiga” - Capitólio, Palatino, Célio e Aventino - mas não vos vou maçar com conversa de ruínas uma vez que pretendo causar-vos esse transtorno quando chegarmos à Grécia. Do meu dia romano guardo acima de tudo, nunca é demais repetir, a beleza da Piazza del Popolo. Gosto de pensar que o próprio Fellini percorreu a Via Flamínia e entrou em Roma pela primeira vez através desta praça. É que o excêntrico realizador nasceu em Rimini, a cidade situada no outro extremo dessa antiga estrada romana. Infelizmente, pela lei das compensações, a terra que viu nascer o monstro italiano da arte de filmar foi também a terra que viu morrer o monstro italiano da arte de pedalar. Sim, falo de Marco Pantani, um gajo que andava de bicicleta, mas que não era nada cínico, ao contrário do Edgar Novo, a quem dedico este texto.

(continua)



* tendo ouvido dizer que era no Café Rosati que se reuniam os intelectuais de esquerda consegui confirmar que este era frequentado por Italo Calvino, Pasolini e Alberto Moravia.

** tendo ouvido dizer que era no Café Canova que se reuniam os intelectuais de direita consegui confirmar que este era frequentado pelo Federico Fellini. Não consegui foi confirmar se podemos considerar o Fellini como um homem de direita! Embora também duvide que alguém consiga confirmar se podemos considerar o Fellini como um homem de esquerda.

*** na gravura de Piranesi (1720-1778) que vemos no início do texto a piazza ainda não tinha a sua aparência actual, apresentando-se com um austero formato trapezoidal. Foi muito provavelmente o desenho elíptico que Bernini atribuiu à Praça de São Pedro que inspirou a sua posterior renovação.    

**** sem querer ser exaustivo, ficam aqui alguns dos obeliscos roubad… digo, emprestados pelos egípcios aos seus amigos romanos: Obelisco di Dogali (Termas de Diocleciano), Obelisco Macuteo  (Panteão), Obelisco Flaminio (Piazza del Popolo), Obelisco Lateranense (Basílica de São João de Latrão), Obelisco della Minerva (o que está em cima do elefante, nas traseiras do Panteão), Obelisco Vaticano (Praça de São Pedro). Note-se que alguns dos obeliscos antigos que podemos ver em Roma, como por exemplo os que se encontram na Praça Navona, no Quirinal ou na scalinata da Praça de Espanha, não vieram do Egipto, sendo apenas cópias mandadas erigir por romanos com segmentos de ADN provenientes de macaquinhos de imitação.

***** nesta fotografia tirada numa muito posterior viagem a Roma podem ver o sacana do Baffetto agarrado à minha mulher! Em troca de uma boa pizza um gajo até faz de corno manso.