segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O meu inter-rail; 11º capítulo: "O sacana do convés, a mim não me convém, la la la la"



 



A despedida não foi fácil. Roma impressionou-me tanto que durante uns dias via tudo em tom ocre, como se a cor predominante da cidade me tivesse contaminado a retina. Apesar de lá ter chegado com uma brutal expectativa acumulada, fiquei mais perto de padecer do Síndrome de Stendhal (alterações psicossomáticas provocadas por uma overdose de beleza) do que do Síndrome de Jerusalém (alterações psicossomáticas provocadas por uma overdose de desilusão e decepção*).
Uma maneira interessante de fazer o desmame teria sido utilizar a Via Appia, a estrada que liga Roma a Brindisi desde o III século antes de Cristo. Desconfio até, que ao caminhar durante vários dias entre ciprestes, pinheiros e restos das cruzes dos homens de Spartacus, teria usufruído de uma real possibilidade de me transformar num homem santo. Curiosamente, ou nem por isso, nunca liguei pevas aos pinheiros em Portugal mas fico sempre fascinado com os pinheiros em Itália. Pode ser aquela coisa dos santos da porta que não fazem milagres, ou aquela outra da galinha da vizinha, historietas que não são mais do que uma abordagem popular à miopia psicológica que condiciona a relação dos seres humanos com as coisas que conhecem melhor. Ou, pior ainda, com as coisas que não conhecem de todo apesar de serem de visualização diária. Como quando reparamos num turista a olhar muito atento para uma casa na nossa cidade, casa essa que já tínhamos visto inúmeras vezes sem ter visto verdadeiramente vez nenhuma. Mas nisto dos pinheiros estou mais inclinado a justificar a discrepância com a técnica italiana da poda (não confundir com as actividades que decorrem nas festas organizadas pelo Berlusconi, pois nesse caso escreve-se com ph).   





A Via Nomentana desagua em Roma na antiga Strada Pia
    Também já vos falei da Via Flamínia, ide lá ver os apontamentos  




Apesar do chamamento da Via Appia, optei por percorrer esses 500 km no habitual comboio nocturno, poupando tempo** e custos de hotelaria. Recordo que o dia passado na capital italiana foi apenas um inevitável compasso de espera no percurso para Istambul, percurso esse que passava por Brundisium, a principal janela romana para o oriente.
Descobri nessa noite que as imediações das stazione ferroviarie di Roma não são os locais ideais para passear depois do ocaso (palavra poética, muito mais bonita que pôr-do-sol). Bastante frequentadas por sem-abrigo e por marginais de pequeno calibre, constituem excelentes opções de visita para as pessoas que têm a mania que são verdadeiros viajantes e que desejam fugir dos pontos turísticos. Como não sou desses, preferi procurar rufadeira dentro da estação e não nas redondezas da mesma. Para ser rigoroso, “rufadeira”, uma palavra portuense para designar comida farta e que me parece ainda mais popularmente genuína do que “tacho”, talvez não seja bem aquilo com que pude contar na maioria dos dias desta viagem.

Tratemos então, mais aprofundadamente, da pergunta que se impõe: nos anos 90 o que comiam os, lá vem o asqueroso termo novamente, interrailers ? E a resposta é: depende. Partindo do princípio que a maioria viajava com o dinheiro contado, podemos dividir essa maioria em dois grupos: os gajos e as gajas. Os primeiros comiam no McDonald's e, quando desesperados da repetição, faziam um intervalo de desenjoo num italiano barato. Os segundos (neste caso, as segundas) procuravam supermercados onde adquiriam fruta, iogurtes e ingredientes para a confecção de sandes. Chegavam até a comprar alfaces e tomates, as saudáveis! Por vezes havia gajos que se comportavam como gajas e gajas que se comportavam como gajos, mas não conheci muitos casos desses. Em relação à minoria que viajava com orçamento folgado, não tenho dados empíricos que permitam uma análise nem capacidade intelectual para desencantar conhecimento apriorístico sobre o tema (em resumo, só conheci tesos). Quanto à minha experiência gastronómica, se retirar os dias que passei em Istambul, onde comi bem e barato em restaurantes modestos, resumiu-se ao já referido binómio: Big Mac e Massa à Bolonhesa em italianos foleiros. O segredo para maximizar a utilidade da segunda opção, ainda assim mais cara do que a primeira, consistia em pedir muito pão. Este podia ser ingerido durante a refeição desde que se salvaguardasse um bom bocado para o final, que seria engolido após cumprir a sua função de lava-loiça.  

Não me recordo já do que comi nessa noite antes do embarque. Recordo-me sim, de uma forma quase dolorosamente perfeita, do estado lastimoso em que tinha os músculos das pernas e a região do cóccix, vítimas principais da minha ganância de turista. Também tenho bem presente a vontade que sentia de tomar um banho e de ter tido de me contentar com a lavagem da tromba nos lavatórios da estação. E de me ter visto grego para abrir o cacifo onde a minha mochila tinha passado o dia (sortuda, esteve à sombra, eu apanhei um escaldão que me lixei), o que me levou a pensar que a União Europeia, no meio de tantos milhares de directivas estúpidas que emite, se podia dedicar a emitir uma (igualmente estúpida, naturalmente) em que uniformizasse os mecanismos de abertura e fecho de todos os cacifos existentes em aeroportos, estações de comboio e centrais de camionagem***. Estourado, adormeci mal entrei no comboio e quando acordei, já com o sol a entrar pela janela do meu compartimento, estava tão próximo de Brindisi que nem arrisquei uma visita ao WC da carruagem. O dia que passei na cidade, a fazer horas para o ferry do fim da tarde, foi vivido sob o signo do desperdício de tempo. Não pesquisei, não procurei, não me informei. As poucas coisas que vi foram aquelas que se atiraram para a frente dos meus olhos no percurso entre a estação de comboios e o porto, onde aguentei várias horas em estado semi-letárgico. Soube depois que Brindisi tem alguns pontos de interesse e que Plínio o Velho**** a colocou entre as mais importantes localidades da península italiana. Paciência, não estava com paciência. Algumas viagens são tão cansativas que as pessoas só falam bem delas depois do regresso, quando já se encontram sossegadas no conforto do lar. E nesses momentos proclamam as saudades que sentem dos locais por onde passaram e o quanto se divertiram no espectacular passeio. Se as apanhassem a meio da viagem, no ambiente doentio de um aeroporto, afectadas por um daqueles achaques de cansaço provocados pela conjugação das longas caminhadas com as diferenças climáticas e com a troca dos sonos, era possível que aceitassem ser cobaias de uma qualquer perigosíssima experiência de teletransporte que lhes prometesse o sofá de casa em 5 minutos.

O ferry que me levaria até à Grécia (especificando especificamente, até à cidade de Patras) abriu as portas ao embarque muito antes da hora da partida, por forma a conseguir engolir os milhares de passageiros e as centenas de carros que transportaria no ventre (achava eu) durante as mais de 20 horas de navegação pelos mares Adriático e Jónico. Mas poucos minutos depois da abertura já a realidade das coisas chocava violentamente contra o meu focinho. Penso já vos ter dito que esta travessia me ficaria de borla, uma vez que o passe do inter-rail contemplava aventuras aquáticas nesta região (suponho que por causa das muitas centenas de ilhas gregas). O que não vos disse foi que a borla concedida implicava a renúncia a qualquer tipo de leito, assento, ou mesmo tecto. Os interrailers que esquecessem o ventre do navio, o nosso lugar era no dorso. Quando me apercebi que ia passar um dia inteiro no chão de um convés, primeiro sob o relento da noite que se aproximava e depois sob a inclemência do sol grego, pensei em atirar-me ao mar. Com a chegada dos outros desgraçados e a visão da respectiva “tenda” que se foi montando, animei ligeiramente. Os comes e bebes que instantaneamente forraram os sacos-cama (sacos-cama que, por sua vez, tinham previamente forrado o deck da embarcação) fizeram-me redescobrir o amor à vida. Aos meus leitores que estão neste momento a questionar a minha imprevidência e falta de planeamento, baseando essa postura crítica na suposição de que teria sido fácil obter informações sobre as condições em que realizaria a travessia antes do início da mesma, tenho apenas um comentário: bardamerda. Cuidais vós que é bonito e avisado planear as putinhas das viagens ao pormenor e que dessa forma vos livrais de todas as surpresas desagradáveis e consequente mal-estar? Livrais-vos mas é o caralhinho. O mal-estar é parte integrante da existência e tentar fugir-lhe é como tentar escapar por entre as gotas da chuva. Nas viagens, como na vida, há apenas que optar pelo tipo de mal-estar que julgamos preferível. Podemos não nos preocupar com nada e acabar trucidados pelos acontecimentos ou, em alternativa, podemos preocupar-nos com tudo, controlar os acontecimentos, e acabar trucidados pela ansiedade. Pensai nisto e até à próxima.  




* não conheço Jerusalém e por isso não sei se é justo que a patologia em causa - uma desilusão doentia provocada por uma realidade que não corresponde às elevadas expectativas previamente acumuladas - leve o seu nome. No entanto, sabe-se que os serviços de saúde mental da cidade recebem uma média de 10 pessoas por mês gravemente atormentadas com a diferença entre a cidade que está à frente dos seus olhos e a cidade “celeste” que idealizaram antes da visita.


** o tempo, sempre o tempo. Qual é, afinal, a verdadeira duração de uma hora, visto que algumas passam a correr e outras se prolongam ad nauseam (em certos dias, as que passo no trabalho são desesperadamente eternas). Gostava de recorrer à Recherche de Proust ou à obra de Bergson para dissertar sobre a ilusão, subjectividade e relatividade do tempo, ou seja, sobre o carácter metafísico da duração. E não é por nunca ter lido nem um parágrafo de um ou de outro que não o conseguiria fazer. Mas fiquemo-nos por exemplos simples: quando a mulher diz ao marido “depois hás-de ver aquela torneira que está a pingar”, está a associar a palavra “depois” a um intervalo de tempo compreendido entre os 5 e os 50 segundos, enquanto o destinatário da mensagem está a idealizar um intervalo de tempo situado entre os 5 e os 50 dias. O facto de Proust ter conseguido escrever os seus livros sem ter vivido estas interessantíssimas experiências conjugais (era homossexual), ilustra bem as suas superiores capacidades intelectuais.


*** estimo ter gasto 3% da duração do meu inter-rail a ler instruções de cacifos, outros 3% a enfiar-lhes murros e à volta de 5% a explicar aos seguranças das estações que estava tudo bem comigo e que tinha sido uma fúria passageira que não se repetiria (com excepção da Grécia, em que os seguranças me ofereceram a sua solidariedade e também quiseram atestar no irritante cubículo).


**** um gajo que respeito, apesar de ter sido nabo o suficiente para ir a correr ver de perto a erupção do Vesúvio e acabar morto pela mesma. Plínio o Velho era daquele tipo de pessoas tão curiosas que, vivendo nos dias de hoje, pararia o carro na estrada para ver um acidente e trataria de se colocar na posição perfeita para ser atropelado. Plínio o Novo, mais fino, ficou a ver ao longe enquanto tirava notas, deixando às gerações futuras um registo valioso sobre vulcões e um testemunho interessante sobre as virtudes da prudência (apesar deste episódio singular entre Plínios, continuo a acreditar na relação directa entre vetustez e sabedoria, e no insubstituível papel de um ancião na corrente de transmissão geracional. É uma crença baseada na experiência pessoal. Passei uma grande parte da infância na companhia da geração sénior da minha família. As avós (materna e paterna) deram-me o mimo que é de lei, os avôs ensinaram-me umas coisas. O avô paterno, habitante de uma casa de lavoura de um meio rural, ensinou-me a vindimar, a cavar, a regar, a dar de comer a bichos, a armar ratoeiras, a rachar lenha, a serrar e a pregar, além de me deixar andar no carro de bois e de me dar boleia no quadro da bicicleta; o avô materno, habitante de um apartamento de um meio urbano, ensinou-me a ler o jornal, a jogar damas e xadrez, a escrever à máquina, a engraxar sapatos até estarem a brilhar, a ouvir música com mais de 100 anos e a estar longas horas sentado num sofá sem ficar irrequieto. Curiosamente, o avô rural e o avô urbano viviam a uma dúzia de quilómetros um do outro, uma vez que nos anos 80 bastava andar uma dúzia de quilómetros para chegar de uma qualquer livraria da baixa do Porto a uma qualquer eira de pedra na Maia ou em Vila do Conde. Nos dias de hoje tudo mudou e já é preciso andar para aí uns 15).