terça-feira, 28 de outubro de 2014

O meu inter-rail; 12º capítulo: Os intrépidos




O Barco da Ressaca
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Aníbal Éter - 2014





Deixei-vos quando me encontrava no convés do ferryboat Brindisi-Patras, incomodamente alojado no chão do mesmo mas usufruindo da agradável companhia de dezenas de outros intrépidos fazedores de inter-rails. O ambiente era festivo, havia comida e bebida espalhada por todo o lado, várias nacionalidades em fraterno convívio, alguma droga a circular, gajas boas, gajas engraçadas, gajas fraquinhas, gajos bonitos com guitarras a tentarem engatar as gajas boas, gajos bonitos que não sabiam cantar a tentarem engatar as gajas engraçadas, gajos feios mas espertos a tentarem engatar as gajas fraquinhas. Como era de esperar, os elementos da equipa feios mas espertos alcançaram os melhores resultados práticos. O pôr-do-sol no Mar Adriático foi muito bonito e perfeitamente adequado a todos os clichés existentes sobre o tema “pôr-do-sol no mar”. Foi um momento em que me senti verdadeiramente feliz, sem qualquer vestígio daquele popular desejo de se querer estar onde não se está, sentimento que foi descrito pela primeira vez por Baudelaire no séc. XIX embora só se tenha popularizado devidamente no séc. XX com o “Estou Além” do António Variações, que Deus o tenha.
A temperatura manteve-se alta durante a noite, deixando os meus ossos a salvo de qualquer vestígio de orvalho e o meu nariz a salvo da catástrofe que iria ocorrer se todos os malcheirosos alapados naquele deck abrissem simultaneamente os sacos-cama para se agasalharem.

A noite foi longa, mas não tão longa quanto as promessas que sobre ela foram lançadas pelos intrépidos. Que ia ser uma directa. Que dormir era um desperdício de tempo. Que nós é que somos duros. Que isto e que aquilo e o caralho. Na realidade, as várias nacionalidades mostraram as suas diferenças culturais em interessantes conversas madrugada dentro e as suas semelhanças na arte da bazófia quando foram derrubadas pela sonolência ao nascer do dia. Como diria Gertrude Stein, uma directa é uma directa nunca é uma directa. Se bem me recordo contribuí para o inevitável e infindável debate sobre as características dos povos, descrevendo o português típico como viciado em sofrimento e empreendedor da indústria da choradeira*. Suponho que andava numa fase maníaca e a sentir-me mais jovial e espirituoso que os meus compatriotas. Agora que a idade e a realidade também me despertam vontade de empreender nesse sector, apercebo-me que fui uma besta. Prossigamos**.       
O período de sono ao relento foi mais curto do que a pila de um gajo acabado de sair do Mar do Norte. Às 9 da manhã, só aqueles que tinham adormecido completamente bêbados continuavam a suportar o sol na cabeça sem abrir os olhos. À custa de uma despesa considerável no bar do navio entre as 11 da manhã e as 3 da tarde aguentei até Patras sem entrar em desidratação. A conversa entre passageiros não mais foi retomada, já ninguém estava com paciência para debater a diversidade cultural no contexto dos povos europeus. Os intrépidos já não se sentiam intrépidos, estava tudo partido e rabugento. Resultado final: Travessia – 2; Interrailers – 1

A cidade de Patras, situada na costa norte do Peloponeso, aparentou ser aquilo a que normalmente costumo chamar uma valente merda. Digo aparentou pois não me parece justo ser assertivo a partir de uma experiência de meia-dúzia de horas, ainda para mais sem recurso a qualquer livro que me impingisse uma hierarquia de lugares a visitar***. É verdade que é uma terra com boas vistas de mar e com algum interesse histórico. Por exemplo, Santo André, patrono de duas igrejas romanas sobre as quais, em textos anteriores, verti já o meu vasto conhecimento (duas linhas sobre Sant'Andrea al Quirinale, a propósito de Bernini; uma linha sobre Sant'Andrea della Valle, a propósito de Puccini e da sua Tosca), foi crucificado em Patras numa crux decussata, também conhecida por sautor, e as suas relíquias mantêm-se por lá. São Pedro achou não ser digno de morrer como Cristo e foi crucificado de cabeça para baixo, o irmão achava o mesmo e teve como destino uma cruz em forma de X (podemos concluir que o sol que apanharam no mar durante os anos em que pescavam peixes e não homens lhes deve ter feito mal à cabecinha; como bem sabe o Dr. Paulo Portas, o chapelinho é importante). No entanto, esta coisa das relíquias não me parece motivo suficiente para vos aconselhar uma visita à cidade. Mas peço-vos que se lembrem de Santo André quando estiverem perante a bandeira da Escócia, ou perante a bandeira da Jamaica, ou perante o boletim do euro milhões.

De Patras a Atenas são duzentos e poucos quilómetros, mais ou menos a mesma distância que o Alfa Pendular percorre nas duas horas e quinze minutos que demora a chegar do Porto a Santarém. Na Grécia dos anos 90 foram umas cinco ou seis horas de comboio até conseguir colocar o meu sagrado pé sem micoses no solo da capital helénica. E isto foi apenas a primeira etapa da horrível e incrivelmente demorada travessia do país a que me submeti com o intuito de chegar à Turquia. Recordo que faltavam muitos anos para os Jogos Olímpicos de Atenas, para a designação de Patras como Capital Europeia da Cultura e para o lançamento dos grandes investimentos que colocaram os gregos nos trilhos da bancarrota. Em alguns momentos de maior irritação lancei tamanhas pragas sobre aquele povo que ainda hoje sinto remorsos diante das notícias relativas à crise socio-económico-financeiro-político-outra-qualquer-a-designar que entretanto sobre ele se abateu. Mas foda-se, que os pariu. Quem, naquela altura, atirava comparações estatísticas a justificar a colocação de Portugal e da Grécia no mesmo patamar de desenvolvimento, tinha merecido uma viagem agarrado ao remo de uma galé até ao porto do Pireu e posterior enrabamento com coluna do Pártenon, capitel a entrar primeiro. Tivesse Camus vivido mais quarenta anos e teria acrescentado uma errata ao seu Le Mythe de Sysiphe com o texto: onde se lê “o absurdo nasce da confrontação entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo” deve ler-se o absurdo nasce da confrontação entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo e, também, da elaboração de analogias entre Portugal e a Grécia”. Mas não viveu; maldita árvore.

(continua)



* tinha na cabeça o português, que sem se aperceber, se interroga: “se resolver o problema, depois queixo-me de quê?”

** embora já ande há uns anos com tendências “tudo isto é triste, tudo isto é fado”, ainda não consegui atingir o nível dos viciados em sofrimento de meia-idade que conciliam sem qualquer problema as angústias da existência com as angústias da continuidade. Falo daquelas pessoas que afirmam categoricamente que o mundo e as pessoas prestam para pouco e que Portugal e os portugueses não prestam para nada mas que, ao mínimo indício que os faça suspeitar que os filhos sentem pouca vontade de experimentar a multiplicação gerando netinhos, se desfazem em lamentos a Deus e questionam com ar sofredor como se dará a continuidade da espécie, da família, da nação. Oh desgostosos, se esta merda toda não vale um caralho, mais vale que se interrompa a continuidade e que acabe de vez, não?  

*** decidir sobre a utilização ou não de guias de viagem é outra problemática que deixa em cuidados os verdadeiros viajantes (e por isso, graças a Deus, não me deixa em cuidados a mim). Alguém cujo nome não recordo apresentou esta questão com base no conceito da “hierarquia estabelecida por terceiros”: os guias avaliam o interesse e importância dos vários locais de uma cidade e nós acabamos por adaptar a nossa opinião e as nossas visitas à opinião do gajo que escreveu o livro. Numa palavra: maravilhoso! Alguém a decidir por mim os locais a visitar, permitindo uma confortável dose de preguiça mental, a que se adiciona a dose de vaidade proporcionada pela posterior transmissão aos amigos das “nossas” sábias análises sobre os sítios que “descobrimos” enquanto “flanávamos”.