quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Uma questão de cou




“Não deixes o teu pescoço aos grilhões da sorte”

Shakespeare



Os responsáveis do Syriza, numa bem sucedida operação de charme, conseguiram desviar totalmente as atenções do mundo. Ao invés de estarmos focados, como antigamente, no gargalo financeiro do governo da Grécia, estamos com os olhos postos no gargalo anatómico dos governantes gregos. A gravata de Alexis Tsipras, ou, mais propriamente, a ausência de gravata no colarinho de Alexis Tsipras, ocupou a comunicação social na primeira semana a seguir às eleições helénicas. O cachecol do Ministro Varoufakis tomou conta da agenda noticiosa na segunda. Desde os tempos da Revolução Francesa que não havia uma tal atenção aos pescoços dos políticos.
Imagina-se a troca de conversas nos Conselhos Europeus: o representante francês, admirado, solta um comentário sobre  le cou do grego; Maria Luís Albuquerque, entusiasmada, acena com a cabeça e diz concordar que a Grécia está a merecer um pontapé no cu para fora da zona euro; o ministro das finanças alemão, acalmando as hostes, afirma despreocupadamente que o Syriza é só garganta. Nunca na história da construção europeia uns simples gasganetes provocaram tamanha confusão nos salões de Bruxelas.
Na opinião deste vosso humilde analista político e aprendiz de anatomista, Tsipras e Varoufakis não estão a abordar os parceiros da moeda única da forma adequado. Na verdade, acertaram na parte do corpo que será útil à resolução dos seus problemas - o pescoço -, mas falharam nos acessórios que trouxeram à discussão. Nada me move contra gravatas e cachecóis, mas a resolução deste imbróglio deve ser procurada na História de Portugal e nas suas lendas, nomeadamente as relativas à fundação da nacionalidade. Diz-se que Egas Moniz, aio de D. Afonso Henriques, como penhor pela quebra do juramento de fidelidade do seu amo perante Leão e Castela, apresentou-se diante do Imperador da Hispânia com um baraço ao pescoço. Afonso VII, comovido com tamanha honra e coragem, poupou-lhe a vida e encheu-o de presentes. Alexis Tsipras pode esquecer a gravata e Yanis Varoufakis deve deitar fora o cachecol. Na União Europeia, uma corda ao pescoço e a bolinha baixa são os únicos acessórios de que vão precisar.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Borgen, o império da assertividade



Atrasadinho como sempre, acabei agora de ver a 1ª temporada de Borgen. A palavra que melhor descreve o estado de espírito com que fiquei é a tal maldita com que Camões encerrou Os Lusíadas: inveja. Não da organização dinamarquesa, ou das casas elegantes e confortáveis onde se pode andar descalço o ano inteiro, ou da beleza da chefe de governo (desculpe-me, Eng.ª Maria de Lourdes Pintasilgo), mas da presença avassaladora da assertividade em todas as facetas do quotidiano. Claro que nunca sei se as séries reflectem a realidade cultural dos países onde são filmadas ou apenas os desejos de quem está a filmar. No entanto, é muito mais avisado da minha parte apostar na primeira hipótese, uma vez que a segunda não me proporcionaria assunto sobre o qual escrever.

Portugal é, de todos os países onde vivi, quer no reino do real quer no reino da ficção, aquele em que a assertividade é mais difícil de encontrar. É verdade que no reino do real nunca vivi noutro lado, mas no reino da ficção já estive por várias vezes emigrado. Os portugueses, em detrimento da postura assertiva, preferem a postura passiva, a postura agressiva, ou, na maioria dos casos, a postura passivo-agressiva (por esta ordem, da passividade à agressividade, sem passar por nenhum estado intermédio). Na minha totalmente infundada análise, este é o motivo pelo qual temos um dos maiores níveis de consumo de ansiolíticos em todo o mundo. A passividade conduz-nos normalmente a uma refeição completa: adiamos as tomadas de decisão (aperitivo); respondemos “sim” a solicitações às quais nos apetece responder “não” (prato principal); digerimos um grande sapo (sobremesa). Nesta situação, a benzodiazepina acaba por se tornar obrigatória no processo de digestão. Da outra postura, a agressiva, que nos leva a falar e a agir sem reflexão prévia, retiramos quase sempre meia-dose de taquicardia imediata e uma boa dose de arrependimento a médio-prazo, sendo o mergulho no Xanax uma questão de tempo. Quem se alimenta de emoções e de impulsos, acaba por perfumar a retrete com o aroma da culpa e do remorso. Mas isso não acontece nas casas de banho dinamarquesas de Borgen. Nessas, onde se sentam os belos rabos da P.M. Birgitte Nyborg e da jornalista Katrine Fønsmark, reina o doce aroma da assertividade, um cocktail formado por doses bem equilibradas de racionalidade, auto-estima, abertura, confiança e frontalidade. Não são, como no conhecido piropo dos trolhas, bombons. Mas em relação às matérias fecais portuguesas, até parecem.

(também aqui)