terça-feira, 24 de março de 2015

Falsas Lentas



A Polícia Judiciária acaba de abrir um concurso para recrutar 120 novos inspectores. Pelos vistos, embora nada o faça prever, a PJ está à espera uma grande onda de gatunagem em Portugal nos próximos tempos. É a vida, após tantos anos de honestidade generalizada, algum dia haveríamos de ser atingidos pelo fenómeno da criminalidade. Mas voltemos ao concurso. Sabendo da actual preocupação da sociedade com a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, resolvi analisar os requisitos exigidos aos candidatos dos dois sexos. E, para meu grande espanto, o processo de contratação pauta-se por uma enorme justiça e igualdade. Ora vejamos…
Para chegarem a inspectores da PJ, homens e mulheres têm de se submeter a um teste escrito de conhecimentos. Superado este, chega a hora de calçarem as sapatilhas (“ténis” é um desporto, seus morcões) e de mostrarem ao mundo as aptidões físicas através de provas de destreza, velocidade, resistência e força. E aqui começa a justiça do processo. Os homens devem saltar de pés juntos um comprimento mínimo de 225 centímetros, as mulheres podem ficar-se pelos 165; os homens têm de correr 2400 metros em menos de 12 minutos e realizar um percurso de velocidade em menos de 18 segundos, as mulheres dispõe de 14 minutos para a primeira dessas provas e de 21 segundos para a segunda; aos homens são exigidos 40 abdominais e 35 flexões de braços com apoio na ponta dos pés, às mulheres pedem-se 30 abdominais e 25 flexões com apoio nos joelhos; os homens precisam de ultrapassar uma pista de obstáculos em menos de 18 segundos, as mulheres precisam de percorrer a mesma pista em menos de 24.

Embora à primeira vista pareça existir uma forte discriminação entre os sexos, com claro prejuízo para o masculino, essa é uma análise precipitada e que não leva em conta a segmentação da ladroagem. Na verdade, existem gatunos rápidos e gatunos gordos que são mais lentos, bandidos ágeis e bandidos que já revelam problemas nas articulações, larápios resistentes e larápios fumadores que abafam após uma breve corrida, meliantes cheios de força e meliantes mais fracos devido à falta de vitamina D (é uma ocupação em que se trabalha muito à noite, ficando prejudicada a saudável exposição ao sol). Assim, perante cada caso concreto, a PJ destacará para o lugar da ocorrência uma brigada constituída por homens ou uma brigada constituída por mulheres. Se o episódio criminoso for protagonizada por um gangue heterogéneo, avança uma brigada mista e decide-se no local quem persegue ou quem luta com quem. Fica por isso claro que aquilo que parece ser um claro favorecimento do sexo feminino é, afinal, um mecanismo justo em prol de uma gestão moderna e eficiente dos recursos humanos. E os homens excluídos do concurso que conseguirem tempos melhores que algumas das mulheres aprovadas devem ficar contentes: uma vez que não há patifes em boa forma física que cheguem para tantos inspectores, acabariam desmotivados por terem de andar a correr atrás de balofos.      


quarta-feira, 11 de março de 2015

Uma praga para proteger a praga


Panos Kammenos, ministro do Governo da Grécia, ameaçou os líderes europeus com uma onda de milhões de migrantes gregos caso a Europa não ceda durante as próximas negociações com Atenas. É uma espécie de reposição das maldades bíblicas que Moisés fez ao faraó egípcio para proteger o seu bondoso povo, só que, em vez de rãs e gafanhotos, a praga invocada pelo protector Kammenos é formada pelo próprio povo bondoso que diz querer proteger. Tentando explicar este paradoxo com uma anedota do Joãozinho (a forma mais fácil de explicar qualquer coisa a qualquer português), seria como se o pai do Joãozinho dissesse à professora do Joãozinho: "ou deixa de escrever na avaliação do meu filho que ele é insuportável ou eu deixo-o em sua casa durante um mês que é para a senhora aprender.”

Este é só mais um caso que mostra que a ideia que o novo Governo grego tem sobre o povo que governa é surpreendentemente parecida com as generalizações abusivas e insultuosas feitas por estrangeiros carregados de preconceitos e por jornalistas-escritores com orelhas grandes e que piscam o olho no final do noticiário. Senão, vejamos: José Rodrigues dos Santos informou-nos, na RTP e a partir de Atenas, que a fuga aos impostos era uma modalidade muito apreciada por aqueles lados; logo lhe caíram em cima todos os membros da Associação de Amizade Portugal-Grécia. Passadas umas semanas o ministro Varoufakis propõe o recutamento de milhares de inspectores à paisana para tentar combater uma “cultura da fuga aos impostos que está muito enraizada na sociedade grega”; logo a Associação de Amizade Portugal-Grécia propõe que a estátua a erguer ao responsável pelas finanças helénicas passe dos anteriormente projectados 10 metros para a mesma altura do Cristo Rei de Almada. Fica a ideia de que as generalizações sobre os gregos apenas podem ser proferidas por homens sem gravata. E digo isto, evidentemente, sem querer generalizar.

quinta-feira, 5 de março de 2015

My God




Estava mais ou menos a meio do terceiro volume da “Recherche” (tinha iniciado a releitura da obra na véspera e sou um leitor vagaroso) quando, ligeiramente cansado, resolvi ligar a television. Primeiro, dada a algazarra e a teatralidade que reinavam no ecrã, pensei tratar-se de um documentário científico sobre a Perturbação Histriónica da Personalidade, mas percebi depois que era apenas o programa “O Eixo do Mal”. Passados uns minutos, no meio da confusão e do movimento de braços, consegui ouvir a Clara Ferreira Alves dizer que o nosso Presidente Cavaco Silva é um saloio. Infelizmente, como tenho passado muito tempo mergulhado na english language (estou a reler todo o Martin Amis, à razão de dois títulos por dia), nem sempre compreendo à primeira o linguajar do povo. Peguei então num dos meus 38 dicionários de Português e consultei a respectiva entrada. A primeira definição que encontrei afirmava que um saloio pode ser um habitante dos arredores de Lisboa, a norte do Rio Tejo. Excluí-a imediatamente. Cavaco é de Boliqueime e, embora ande um pouco baralhado geograficamente (passei os últimos anos numa correria entre Paris, onde terá lugar o meu próxi… primeiro romance, e as fronteiras israelo-libanesa, sírio-turca e turco-iraquiana, onde recolhi os dados necessários para escrever uma série de reportagens a publicar em edições especiais da “New Yorker”), penso que o Algarve fica a sul do Tejo. 

A definição que se seguia relacionava o saloio com o trabalho no campo, o que me deixou com algumas dúvidas pois é provável que o jovem Aníbal tenha dado à enxada em algum terreno da família. Mas isso foi há muitas décadas, antes de investir nos estudos e virar um white-collar worker. Clara Ferreira Alves, uma intelectual de esquerda, não estava de certeza a gozar com o passado de alguém que entretanto apanhou o tão elogiado “elevador social”. (e por falar em elevador, sabiam que li o último Houellebecq numa cabina de um hotel em New York, entre o lobby e o 20º piso? E que escrevi a crónica sobre o mesmo entre o 21º e o 38º, onde ficava o meu quarto? Às vezes até fico atónito com o meu cérebro tão espectacularmente culto! Mas voltemos ao nosso subject)  
Como da última vez que o vi não estava com o cabelo pintado de amarelo nem a gritar por cima das vozes dos outros, também não me parece que o Presidente de República encaixe na terceira definição presente no dicionário, segundo a qual um saloio é uma pessoa com falta de gosto e de educação. E foi assim, por exclusão de partes, que cheguei a uma surpreendente conclusão: a primeira-dama que se cuide, Clara Ferreira Alves acha o Cavaco Silva um pão.

O meu inter-rail; 14º capítulo: Partenon





Estilóbata, fuste, coxim, ábaco, arquitrave, métopas e tríglifos, cornija e frontão. De baixo para cima, ao som da concertina, eis os elementos do templo dórico que Aníbal Éter, ao torresmo do sol, viu com os que a terra há-de comer. Dizem que o mármore do Monte Pentélico com que foi construído o Partenon se incendeia com reflexos de ouro à luz do amanhecer, mas o nosso intrépido turista não chegou a tempo de comprovar a veracidade de tão bela descrição. E se lhe chamo “intrépido turista”, tal não se deve a nenhuma tendência para a ironia da minha parte (que desde já afirmo ter), mas à necessidade de encontrar um termo de equilíbrio entre o turista apalermado, fase da qual o nosso personagem já tinha saído, e o seguro viajante, fase à qual o nosso personagem ainda não tinha chegado. Claro que isso o chateou, deveria ter planeado as coisas de forma a não perder a alvorada na Acrópole. Sabia que a força do impacto da primeira visualização de um monumento, de um local, ou de uma pessoa, é sempre decisiva para os caprichosos sentidos. A sensação de gostar ou não gostar de algo tão concreto como a Fontana di Trevi pode depender de pormenores tão subtis como o ângulo de aproximação na primitiva abordagem. Federico Fellini sabia disso. Aníbal Éter também mas, nesse helénico dia, descuidou-se. Acabou por se desculpar com a imprevisibilidade dos comboios gregos, empurrando a falha para terceiros. Pior do que as coisas más que acontecem a um ser humano são as coisas más que acontecem a um ser humano sem que este consiga culpar outros seres humanos. Felizmente, a falha não acarretou consequências de maior; o encanto deu-se na mesma. Talvez o Partenon, ao contrário de algumas pessoas, nunca sinta a angústia de precisar de uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão.

Os templos dóricos são despidos de partes supérfluas. Pelo menos eram estes os ensinamentos dos livros de História da Arte que Aníbal Éter metodicamente desorganizava por toda a casa com o objectivo de impressionar as esporádicas visitas. Claro que o edifício que estava à sua frente (chamemos-lhe edifício para facilitar) se encontrava despido de quase todas as partes, fossem supérfluas ou essenciais; mas isso era fruto do camartelo temporal e não de lapsos dos projectistas. Tentou imaginar o já inexistente todo, procurando redundâncias ou inutilidades. O ábaco e coxim formando o capitel; o fuste e o capitel formando a coluna; as métopas e os tríglifos formando o friso; a arquitrave, o friso e a cornija formando o entablamento; tudo isso formando a fachada. É verdade que alguns elementos, como os capitéis que encimam as colunas, pareciam servir interesses estéticos. No entanto, antes desse honroso servilismo, tinham a essencial função mecânica de transmitir aos fustes, com graciosidade, todo o peso da cobertura. Não eram, pois, dispensáveis.

Diante da monumental ruína, lembrou-se do seu lar, e concluiu que os labores construtivos não tinham sofrido mudanças tão acentuadas como se podia pensar à primeira vista. Tamanhos à parte, o que de essencial se tinha alterado entre a época de Fídias e a época de Mestre Ramiro, encarregado da empreitada da casa dos seus pais? É verdade que no tempo do Mestre Ramiro, que era também o seu, as arquitraves se chamavam vigas e as colunas eram conhecidas por pilares, mas a forma como toda a descomunal massa ia sendo descarregada do topo da cobertura até ao terreno firme da implantação era extraordinariamente semelhante. As dúvidas percorriam a cabeça do nosso “intrépido turista” com a velocidade de uma quadriga grega. Quantos anos tinha demorado aquela construção? E quantos mortos?, num tempo histórico duro, pré-higiene-e-segurança-no-trabalho. Teria o supervisor Fídias exigido aos Arquitectos responsáveis relatórios regulares? E Aspásia?, a muito polémica amante de Péricles, conhecida pelos seus cabelos de ouro e pelo seu pé arqueado. Qual a sua importância no sonho partenoniano do estadista? A fortuna por este gasta em obras públicas era reveladora da existência de momentos de alguma falta de juízo. E Aníbal Éter sabia que não existia nada como mulheres de pé arqueado para desajuizar os homens.
A problemática do tino, ou da falta dele, atormentava-o regularmente. Aníbal Éter considerava-se um atinado com azar, não por ter nascido numa nação de desatinados, mas por ter nascido numa nação de desatinados, sem a coragem necessária para se aproveitar dessa situação. Tinha a noção que num país constituído maioritariamente por desajuizados existiam duas grandes opções para aqueles que não o eram: abandonavam qualquer desígnio de irrepreensibilidade moral e tentavam retirar ganhos da falta de juízo dos outros, ou, desejando manter altos níveis de decência, aceitavam a neurose que mais tarde ou mais cedo lhes bateria à porta. Infelizmente, pensava ele, o aproveitamento pessoal da falta de juízo dos outros era, em si mesmo, um acto desajuizado, pelo que, existindo incompatibilidade entre a natureza dessa opção e a natureza da pessoa com juízo, era muito mais provável a existência de desajuizados que obtinham ganhos do juízo de terceiros do que a existência de ajuizados não neuróticos. A esta injusta incongruência dava o nome de “Paradoxo do Ajuizado sem Juízo ou: como tentei aprender a parar de me preocupar e a amar ser idiota, e falhei”.

Era também visitado, a quase toda a hora, por pensamentos relacionados com o dinheiro, mais propriamente pela problemática moral do desperdício. Educado no respeito pelas virtudes da poupança e da frugalidade, esforçava-se afincadamente para amenizar esses princípios, pois julgava-os, nesses optimistas anos do final do século, antiquados e totalmente desencontrados com o ar do tempo. No entanto, sem surpresa, o conservador que era impunha-se quase sempre ao progressista que gostaria de ser, e a continuação do passeio pela Acrópole transformou a sua mente no ringue a que já se habituara.
O combate do dia era um dos grandes clássicos: no canto esquerdo e usando calções vermelhos, a inclinação estética que cultivava; no canto direito e usando calções azuis, o utilitarismo que lhe corria no sangue. A estúpida e impertinente pergunta pairava, aos seus olhos, em todas as pedras: qual tinha sido o benefício concreto de tão colossal e dispendiosa obra? Tentou desculpar-se da mesquinhez do pensamento com algumas lendas históricas igualmente mesquinhas, nomeadamente aquelas que faziam notar a resistência dos concidadãos de Péricles ao seu projecto megalómano. Lembrava-se de ter lido acerca de uma pequena matreirice usada pelo governante para conseguir a aprovação dos atenienses: percebendo que as reticências à construção do Partenon estavam relacionadas com dinheiro, Péricles anunciou que financiaria a obra do seu bolso. Em contrapartida, seria o seu nome e não o de Atena a decorar o frontão. Espicaçados pela inveja, logo lhe autorizaram o gasto público por forma a impedir a glória privada.

“Felizes os que nasceram antes do there is no such thing as public money”, pensou Aníbal Éter em jeito de louvor às virtudes da ignorância, “mas muitos devem ter ficado com os pés de fora para que outros pudessem cobrir a cabeça”. A manta curta, sempre a parábola do dinheiro como manta curta a condicionar a sua, se assim lhe podemos chamar, moral monetária. Brincando com as palavras, podemos dizer que se consumia com as decisões de consumo! Consumição inglória e injustificada, visto que não era verdade que as mantas curtas (ou o dinheiro) só permitissem cobrir a cabeça destapando os pés ou cobrir os pés destapando a cabeça. Com criatividade e uma tesoura, era possível cortar a manta ao meio e, deixando a cintura destapada, utilizar uma das metades para cobrir os pés e a outra metade para cobrir a cabeça. Ao nosso Aníbal o que lhe faltava, verdadeiramente, era a imaginação.

PS - este texto, de estilo diferente do habitual, foi publicado originalmente no blogue http://despesadiaria.blogs.sapo.pt