terça-feira, 23 de dezembro de 2014

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A angústia do cidadão no momento de abrir a caixa do correio




De acordo com uma velha máxima é possível avaliar um homem pela qualidade dos seus inimigos. Esta semana, ao receber uma carta do Instituto Nacional de Estatística que me acenava com uma “contra-ordenação grave” caso não respondesse rapidamente a um inquérito, percebi que um homem também se mede pela imponência de quem o ameaça. E concluí que sou muito pequenino.
O meu avô evitava falar de política nos cafés, temendo a PVDE e o Campo do Tarrafal. O meu pai lia panfletos às escondidas, com medo da PIDE e de uma viagem antecipada para Angola. Eu tremo de cada vez que abro a caixa do correio e me deparo com uma carta das Finanças, da Segurança Social, e, agora, também do INE. Cada um sofre as ameaças que a sua estatura merece. E a minha acaba de atingir este ponto.

É mais ou menos consensual que as grande conquistas de Abril foram a democracia, a educação e a igualdade. O caso que acabo de contar confirma esse consenso. A democracia pressupõe que o poder não seja detido por poucos mas sim por todos. O Estado Novo, tendo concentrado na polícia política toda a força intimidatória, não salvaguardava os direitos de uma imensidão de outros organismos públicos que também devem ter acesso à sua quota-parte de prepotência. A ASAE e a ACT nunca poderiam gozar dos seus actuais poderes no ambiente autocrático do anterior regime. E isso seria profundamente antidemocrático.

Quanto à segunda grande conquista de Abril, a educação, há que admitir que não foi alcançada por mero acaso mas através de uma estratégia bem delineada e eficazmente executada. Uma das maneiras de evitar as garras dos pidescos agentes era não ler nada, pois nunca se sabia com toda a certeza se o papel que tínhamos na mão não se revestia de um carácter comprometedor. Ora, todos sabemos que sem hábitos de leitura não há educação que resista. Por isso, actualmente, se queremos fugir das ameaças dos organismos públicos, somos obrigados a ler tudo. E esta obrigação não é uma maldade que o Estado nos faz, é sim uma política educativa pensada para o nosso bem. Pretende o meu caro amigo evitar a ansiedade de abrir a caixa do correio e dar de caras com uma qualquer ameaça de um qualquer organismo? Então mergulhe nas Leis, Decretos-Lei, Decretos, Portarias, Regulamentos, Resoluções, Despachos, Circulares Normativas, Circulares Informativas, Assentos, Acórdãos, Ofícios-Circulados e Directivas em vigor. E quando acabar de ler tudo, volte ao início que já é diferente. Não se esqueça que Verdi só afirmou que la donna è mobile porque nunca foi apresentado à legislação portuguesa.

E o que dizer da igualdade? Qual era a lógica de fazer a vida negra ao Manel, que se tinha esquecido de inscrever o filho na Mocidade Portuguesa, deixando em relativa paz o Joaquim, que deixara passar o prazo de entrega da Modelo 651-B na repartição do 3º Bairro Fiscal? Um esquecimento é um esquecimento. Nesse sentido tenho de me vergar perante a justeza contemporânea: se o sistema persegue os cidadãos que dão tiros aos vizinhos e que violam as vizinhas, é perfeitamente razoável que também me persiga a mim por não querer colaborar com o INE. Afinal, não há quem não conheça o famoso mote da revolução: “25 de Abril sempre, lacunas no Anuário Estatístico nunca mais!”