quinta-feira, 6 de março de 2014

O João e o Adão



Dizia Oscar Wilde que a coerência é a virtude dos imbecis. Talvez por acreditarem nessa teoria e por não gostarem de insultar ninguém, alguns dos twitteiros que sigo têm dedicado algum do seu tempo a debater a suposta falta de coerência de outro twitteiro que também sigo. Uma vez que todos eles são importantes na difícil tarefa de aliviar os momentos de tédio do meu dia-a-dia, pretendo dar o meu contributo à discussão, batalhando pela harmonia universal and the pursuit of happiness. Pelos vistos o twitteiro A, conhecido pela empenhada defesa das ideias liberais, desenvolve actividade de investigação sob a alçada de recursos públicos (ou, nas certeiras palavras de Margaret Thatcher que Deus a tenha, sob a alçada de recursos do contribuinte). Logo os twitteiros B, C e etc., imbuídos do saudável espírito do anda cá que já te fodo, saltaram com galhardia em cima do twitteiro A, acusando-o de ser um Frei Tomás agasalhado por um manto de contradições e de ter um corte de cabelo démodé. Adiante que se faz tarde e não estou aqui para empatar: pode um convicto liberal ganhar a vida a soldo do orçamento de Estado sem peso na consciência? Caros amigos e inimigos, a minha resposta é rápida: pode. E se por acaso sentir um remorso nocturno a atrapalhar o necessário repouso deve procurar com urgência um psicólogo que lhe desenrodilhe a linha do pensamento. O debate intelectual de ideias não pode substituir nem condicionar a primitiva actividade de obter honestamente o pão nosso de cada dia e a manteiga para o barrar. Um liberal pode comprar livros do Milton Friedman e do Hayek com o dinheiro que ganhou a trabalhar para o Estado e um socialista pode comprar livros do Keynes e do Karl Marx com o dinheiro que ganhou a trabalhar nas empresas do grupo Mello ou no Banco Espírito Santo. Usando a conversa da treta do Prós & Contras e os finais de telejornal do Rodrigo Guedes de Carvalho, qualquer um deles pode lutar por mudar o “paradigma” do país e do mundo mas qualquer um deles continuará a precisar de comer enquanto o “paradigma” do país e do mundo se mantiver tão estático como a defesa do meu FCP que Deus o tenha também. Na minha maneira de ver as coisas com os olhos da cara e não com o olho cosmológico de Henry Miller, cada pessoa deve analisar as oportunidades que existem no contexto da totalmente legal legalidade e escolher as que considera melhores para a sua vida. Tudo isto sem levar em linha de conta as tais ideias liberais que pode considerar adequadas mas que deverão ser reservadas para o debate ideológico e prática política. Aliás, o maior problema destas discussões é que o próprio conceito de liberalismo anda mais distorcido que o espelho de uma anoréctica. Se usarem também os vossos olhos da cara, perceberão com facilidade que todas as análises do liberalismo que se desviem das clássicas características do “liberalismo político” e do “liberalismo económico” são uma bela merda de análises, construídas apenas para vos baralhar os entrefolhos do cérebro. Ide ler meia dúzia de coisas sobre o pensamento de John Locke e de Adam Smith, os supostos pais desses dois liberalismos, e passareis a mandar abaixo de Braga muitos dos gajos que andam para aí a evangelizar. O primeiro lutou contra o absolutismo de direito divino, defendendo que a origem do Poder Político se encontrava no Povo. Querem uma merda mais democrática do que esta em pleno séc. XVII? Afirmou que deveriam ser os cidadãos a delegar os seus poderes no Estado, para que este aplicasse a justiça pública, protegendo a vida, a liberdade e a propriedade de todos. E que essa delegação deveria ocorrer sempre de uma forma limitada para impedir abusos e tiranias. Que atire a primeira pedra o absolutista prepotente que estiver contra o liberalismo político. Quanto ao Adam Smith, o homem da “mão invisível” (a que está relacionada com a economia de mercado e não a que vocês usam para apalpar gajas em discotecas apinhadas), ficou famoso por defender o mercado livre e a liberdade económica. Mas não empreendeu (bonita palavra para utilizar com este senhor) essa defesa por ser um individualista feroz mas por considerar eticamente superior o princípio da cooperação voluntária entre os homens e porque, na sua análise, o liberalismo económico permitiria um maior crescimento económico de toda a sociedade, melhorando os rendimentos dos pobres sem ter que se confiscar o património dos ricos. Note-se que o conjunto dual de ambos os dois (João e Adão) considerava como insubstituível o papel do Estado nas áreas da Defesa, Justiça, elaboração de Leis e construção de Obras Públicas. Ou seja, pela lógica dos que não gostam de insultar ninguém, o twitteiro A, liberal, nunca poderia ser militar, magistrado, polícia, ministro das obras públicas ou deputado, e todas essas funções ficariam reservadas para os defensores do socialismo (que tratariam de perpetuar o mesmo para todo o sempre). Aliás, se o twitteiro A tivesse tido o azar de nascer num país totalmente estatizado (em que toda a actividade económica está nas mãos do Estado), não poderia exercer nenhuma profissão e teria de emigrar! Mas como normalmente nesses países as fronteiras se encontram fechadas, o nosso twitteiro estaria bem fodido. Caros amigos e inimigos, o que os liberais querem é que o Estado se retire progressivamente de algumas áreas, o que permitirá a diminuição dos seus gastos, o que permitirá a diminuição dos impostos que cobra às pessoas e às empresas, o que permitirá um aumento do investimento, o que permitirá um crescimento da riqueza nacional, o que permitirá que algumas empresas e instituições privadas aumentem os seus orçamentos de investigação, o que permitirá que o nosso twitteiro A tenha novas oportunidades para ganhar a vida. E por muito barulho que façam, não me parece possível alterar a ordem dos acontecimentos acima apresentada. “Ah, mas ó Aníbal, isso é impossível porque a cultura portuguesa é a da cunha e do amiguismo, o Estado está tomado de assalto por tachistas e os partidos políticos são um antro de filhos da puta que não vão decidir contra os seus próprios interesses”. Pois, é capaz, por isso é que eu, que até me considero liberal, olho com simpatia para a troika e para a Merkel e para o Tratado Orçamental e para a inscrição dos limites do défice e da dívida na Constituição e ainda gostaria que nos obrigassem a gravar numa pedra da Assembleia da República um tecto máximo para a carga fiscal e outro para o peso das despesas públicas no PIB. No fundo, já que o nosso Estado não imita Ulisses e não se aprisiona a si próprio, que venha alguém de fora e que amarre o sacana a um mastro com cabos de sisal entrançado e duplo lais de guia. Caso contrário as putas das sereias vão-nos continuar a lixar.


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