quinta-feira, 20 de março de 2014

O meu inter-rail; 5º capítulo: "Les riches”



A viagem para Nice correu bem, obrigado. Depois de umas horas sentado no chão da Gare de Cerbère (eu e mais umas dúzias de outros interrailers piolhosos) apareceu o comboio que me iria levar até à cidade mais importante da Côte d'Azur, a zona indicada para gajos com uma apresentação cuidada como era a minha. Foi nesse momento que teve lugar o primeiro contacto com o tipo de carruagem em que iria fazer 90% das viagens e que me permitiram executar o plano de austeridade assente em dormidas nos comboios sem excessivo sofrimento. Não sendo pessoa de me entregar facilmente ao costume português de sentir muitos sentimentos admito, envergonhado, que foi amor à primeira vista. Amor pela carruagem em si e não por nenhuma pessoa que estivesse lá dentro . Amor, aliás, que apenas nasceu por não estarem muitas pessoas lá dentro. Vou explicar melhor partindo do princípio de que se vocês fossem muito inteligentes estavam a ler bons textos de bons escritores e não esta coisa que vos ponho à frente. As carruagens-tipo do meu inter-rail não foram aquelas a que eu estava habituado em Portugal, conhecidas na gíria técnica como “open” (ou seja, sem divisórias) e caracterizadas por um corredor central ladeado por assentos, mas sim aquelas a que chamam “compartment car” e que são constituídas por um corredor lateral, ligado por portas de correr a vários compartimentos de 6 lugares (3 passageiros num dos lados, sentados cara-a-cara com outros 3 passageiros no outro).



Corredor lateral, o local indicado para fumar uns cigarros com os restantes interrailers ; em caso de partilha do compartimento fechado com terceiros, é de bom tom visitar este espaço aquando da libertação de flatulências



Em alguns casos os assentos eram fixos, permitindo que duas pessoas se deitassem, e noutros eram reclináveis, conseguindo-se encostar cada um deles ao que lhe ficava em frente e permitindo que não duas mas sim três pessoas se deitassem. Uma vez que o comboio não tinha muitos passageiros consegui ficar sozinho numa das divisões, o que permitiu que dormisse o sono da beleza com total conforto (por me conseguir esticar ao comprido) e com total despreocupação (por saber que a porta fechada e as sapatilhas malcheirosas colocadas em posição de cão de guarda me protegeriam dos ladrõezecos e das ninfomaníacas suecas). Este surpreendente oásis de espaço acabou por se revelar a regra nas minhas viagens, o que muito contribuiu para a felicidade do cartão de crédito do meu pai e para a infelicidade de albergueiros, hospedeiros, estalajadeiros, e outros espelunqueiros em geral.



Compartimento com lugares reclináveis; se baixarmos totalmente os 6 assentos conseguimos transformar a divisão numa cama única onde podem dormir 3 pessoas paralelamente à janela; se não os baixarmos pode dormir 1 pessoa de cada lado, perpendicularmente à janela; se viajarem 6 pessoas no compartimento, ninguém dorme e é uma grande merda



Tendo chegado a Nice de manhã cedo e verificado que a melhor opção para prosseguir para leste seria apanhar o comboio das 8 da noite com destino a Roma, decidi ocupar umas horas desse dia na cidade-estado do Mónaco*. As possibilidade de diversão que se encontravam ao alcance da minha carteira no caríssimo Principado eram, à primeira vista, mais reduzidas que as saias das putas dos bordéis de Matosinhos em dias de atracagem de cargueiros no Porto de Leixões. No entanto, com alguma imaginação, foi possível preencher o tempo de uma forma agradável e sem necessidade de estuporar quantidades homéricas de francos franceses (se a memória não me falha um franco francês valia aproximadamente 30 escudos). Decidi desde logo que iria levar a cabo uma das “turistices” mais parolas do infindável universo de “turistices” parolas que existem no mundo: percorrer a pé todo o Circuito de Fórmula 1, túnel incluído. Podem gozar à vontade mas para um ex-viciado em F1Grand Prix (um jogo de computador dos anos 90) era irresistível a tentação de fazer aqueles 3,34 kilómetros (com k, já sabem como é; quem não souber, que vá ler o 1º capítulo) pelas ruas dos quartiers de Monte-Carlo e La Condamine. Comecei na recta da meta, virei à direita na Sainte Devote, a primeira curva da prova (onde numerosos gajos se espetam logo na primeira volta, 4 segundos depois da partida, numa notável ejaculação precoce automobilística), subi a Avenue d'Ostende até ao Casino, parei uns minutos a descansar no jardim que aí se encontra, virado para o luxuosíssimo Hôtel de Paris e assistindo a numerosos facholas a abandonarem as suas inacreditáveis viaturas no meio da rua para que os impecáveis porteiros as estacionassem devidamente, retomei o percurso até à famosa curva-cotovelo (a mais lenta de todo o campeonato de Fórmula 1, abordada a menos de 50 Km/h),  


A curva mais lenta de toda a época de F1, uma homenagem dos monegascos à Alheira de Mirandela


continuei até ao túnel onde os suicid… pilotos, depois de serem atingidos por um primeiro choque visual provocado pela súbita mudança da luminosidade mediterrânica para a escuridão do buraco e antes de serem atingidos por um segundo choque visual provocado pela súbita mudança da escuridão do buraco para a luminosidade mediterrânica, atingem uma velocidade superior a 250 km/h, atravessei-o, dei um delicioso mergulho a partir de um dos paredões do porto, que se encontra logo à saída do túnel (informo não ter sido uma cena “à puto da Ribeira”, uma vez que o paredão em causa estava dotado de uma escada de ferro de acesso ao mar e de um chuveiro de água doce), sequei-me ao sol enquanto observava a entrada e saída de iates GCC (Grandes Comó Caralho), prossegui para a chicane** que obriga os pilotos a travar a fundo logo a seguir a levarem com o segundo choque visual no focinho, entrei no cais onde atracam os já referidos GCC´s e onde é possível espreitar para dentro dos mesmos (e ficar, rápida e inevitavelmente, com uma pasmada cara de lorpa), e terminei a parola “turistice” na zona da piscina, dando descanso às pernas e observando as monegascas em bikini (por forma a manter a cara de lorpa, não fosse dar-se o caso de ocorrer um desvanecimento da mesma, o que seria uma afronta às gentes da terra).



O X a vermelho marca o sítio onde dei um mergulho; espero que consigam ver bem onde está o X


Cumprido o plano inicial, avancei para um almoço de iguarias locais (um BigMac menu, se bem me lembro), marimbei-me para o Musée Océanographique, que até tinha sido dirigido pelo Jacques Cousteau (“e como lhe custou essa direcção!”, diria o Fernando Mendes no “Preço Certo”, lançando um olhar às pernas da Lenka) e optei por visitar o túmulo da Grace Kelly, localizado na mesma Igreja onde, pelo casamento, se tinha transformado em Princesa do Mónaco no ano de 1956. Ainda cheirei a laje para tentar captar as feromonas de fêmea que tinham desorientado os córtex cerebrais de um Príncipe, de vários actores bem-parecidos (Clark Gable, James Stewart, Cary Grant, Frank Sinatra, …) e, segundo alguns estudiosos da 7ª arte, do próprio realizador Alfred Hitchcock, mas, infelizmente, cheirava apenas ao produto de limpeza utilizado para manter a mármore sempre a brilhar. Desiludido, dei por encerrada a visita e abandonei aquele éden de riches, regressando à cidade de Nice. Resumindo a jornada monegasca, posso afirmar sem medo que foi uma excelente não-aventura de condução de Ferraris, Bentleys e Lamborghinis pelas curvas do Principado, uma inesquecível não-diversão numa festa privada regada a champagne a bordo de um iate de 30 metros, uma requintada não-experiência de baccarat chemin-de-fer no pano verde do Casino de Monte-Carlo e uma soberba não-degustação de um jantar no Le Louis XV, um três estrelas Michelin liderado pelo chef Alain Ducasse onde, rezam as lendas, repousam mais de meio milhão de garrafas dos melhores vinhos do mundo. Como podem ver, tudo correu pelo melhor. O Mónaco foi também o local onde percebi a sanha persecutória do fisco português em relação à classe média: não é nada pessoal, é mesmo por falta de alternativas que se enquadrem no que normalmente chamamos de “realidade concreta”. Queriam que o Ministério das Finanças perseguisse quem? Os pobres que não têm onde cair mortos? Ou os ricos que se podem facilmente pirar para estes paraísos fiscais à beira-mar*** onde nem sequer existe IRS? Tenham juízo e paguem mas é o caralho dos impostos caladinhos. E já que falo nas muitas coisas que por lá aprendi nas poucas horas em que por lá andei, fica aqui, em jeito de despedida, mais uma bonita história: lembram-se do filme “Os diamantes são eternos”, com o Sean Connery a fazer aquelas piadinhas de merda maravilhosas no papel de James Bond? Quando vi o filme não consegui entender uma delas. Sendo eu um grande fã e não existindo nessa altura internet para investigar essas coisas, fiquei muito, muito triste! Recordo-vos a cena, entre o agente secreto 007 e a contrabandista de diamantes Tiffany Case:  

Tiffany Case: “Não existe um Mr. Case. O “T” é de Tiffany.”
James Bond: “Tiffany Case?! Que nome elegante!”
Tiffany Case: “Eu nasci lá! [referindo-se à famosa joalharia Tiffany´s] No 3º andar, enquanto a minha mãe comprava um anel de casamento.”
James Bond: “Sorte a sua não ter sido na Van Cleef & Arpels...”

Só no Mónaco, vários anos depois, especado em frente à montra da luxuosa joalharia Van Cleef & Arpels, consegui perceber a puta da piada! E como bónus, em jeito de revelação, apercebi-me definitivamente do carácter de fim-de-mundo do simpático país em que tinha nascido. Digam lá se não foi uma bonita epifania…


(continua) 


* fica a menos de 20 km de Nice e há comboios e autocarros que nos levam lá; ainda pensei em roubar um carro para me deslocar por uma das 3 corniches (não confundir com cornices, estou a falar de estradas) mas depois lembrei-me da Grace Kelly (do acidente fatal, não do bonito picnic com o Cary Grant no filme “To Catch a Thief”) e desisti da ideia (uns anos depois voltei a visitar a Riviera e acabei por conduzir pelas famosas corniches, mas foi num carro alugado meio foleiro e em termos de glamour foi assim um bocado uma merda).



Eu e a Grace Kelly sentados num Alpine Sports Roadster ; ao fundo, o Mónaco





Nesta foto ela trocou-me pelo Cary Grant derivado ao facto de eu lhe ter dito que as costelinhas estavam mal passadas! Gajas…



** sequência de curvas que tem o objectivo de forçar os pilotos a diminuírem a velocidade; não confundir com chicana, aquela coisa em que os deputados se enredam desavergonhadamente, uns por serem uns peçonhentos e outros por estarem verdadeiramente convencidos que é assim que se desenvolve a actividade de “fazer política”.

*** embora um apartamento no Mónaco custe vários milhões (há quem fale de um preço por m2 de 50.000 dólares), dá sempre para rentabilizar a varanda no fim-de-semana do Grande Prémio de F1 (dependendo da vista e da área pode render uma pequena fortuna). 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário