sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Querido diário


Quando alguma obra pública nasce.
Nasce selvagem.
Não é
de ninguém



Querido diário,

Resolvi construir uma casa para a minha família. Sabia que era um investimento grande mas a vida é feita destas decisões ambiciosas e devemos deixar património aos nossos herdeiros. Vem na Bíblia, ou, se não vem, devia vir. Entreguei os projectos a um empreiteiro e ele deu-me um orçamento de 200 mil euros. Não percebia muito de construção mas fiquei sossegado com o que ouvi: “é chave na mão, Sr. Aníbal, não precisa de se preocupar com nada.” Acatei o conselho; não me preocupei com nada. A vida é curta e tenho outras coisas em que pensar. Algum tempo depois apareceu-me à porta a pedir 150 mil euros adicionais para concluir a obra. Pelo que me disse tinha aparecido água no subsolo e isso não estava previsto nos projectos. Aceitei, claro! Coitado do homem, não podia ficar com o prejuízo. Não devemos prejudicar os outros para salvaguardar o nosso dinheiro. Vem na Bíblia, ou, se não vem, devia vir.

Passaram uns meses, a casa ficou pronta, e mudei-me. Achei estranho que uma parte do soalho estivesse levantado e uma das paredes completamente torta mas o construtor disse-me que era como estava no projecto: “agora usa-se assim, Sr. Aníbal, é uma nova tendência. Nunca foi à Casa da Música?” Não disse mais nada. Apesar dos meses que durou a obra, continuava a não perceber nada de construção e, na verdade, nunca tinha olhado com atenção para os projectos nem sequer acompanhado a obra. É preciso confiar nos profissionais e deixá-los fazer o seu trabalho. Vem na Bíblia, ou, se não vem, devia vir. O problema foram as semanas seguintes! Chão totalmente levantado, infiltrações no tecto, paredes rachadas, portas mais descaídas do que as mamas da Ti Micas da mercearia, soleiras partidas. Achei suspeito e lembrei-me que tinha contratado um fiscal no início da obra. Era obrigatório por lei, tinha-lhe pago, mas nunca mais o tinha visto. Resolvi procurá-lo para saber o que pensava do assunto. E foi aí que apanhei um choque! “Oh Sr. Aníbal”, disse-me o homem, “estava a ver que nunca mais me dizia nada. Ando há meses a tentar falar consigo, já lhe enviei cartas, mails, e nada! O senhor foi burlado indecentemente, a obra não foi feita de acordo com os projectos. Os materiais que colocaram são de 4ª categoria e foi tudo feito à pressa e sem engenho. Digo-lhe do coração, nas favelas do Rio de Janeiro há construções melhores, até no ferro e no cimento o roubaram.” Fiquei sem palavras durante uns minutos. Quando regressei a mim, perguntei-lhe acerca da água no subsolo e do custo adicional. “Mas qual água?!”, respondeu-me ele, “aquele terreno é seco como um pão de 3 dias, já lhe disse que foi enganado. Eu avisei-o disso tudo nos relatórios que lhe enviei. Nunca me respondeu, nunca atendeu os meus telefonemas. Porquê, Sr. Aníbal? Porquê?! A casa era para si, não estava interessado numa coisa bem feita? O senhor é rico? Não tem respeito pelo seu dinheiro? Não lhe custa a ganhar?”  

Querido diário, é altura de fazer uma confissão. Isto que acabo de contar não aconteceu comigo, aconteceu no Hospital Pediátrico de Coimbra. E os valores em causa foram bastante maiores, na ordem das dezenas de milhões de euros. Com a saúde não se brinca e não se olha a gastos. Vem na Bíblia, ou, se não vem, devia vir. Sabes, na verdade eu também construí uma casa. Para mim e com o meu dinheiro. Mas andei sempre em cima do empreiteiro e do fiscal e ficou tudo mais ou menos direito. Claro, gastei 4 ou 5% a mais em extras e fiquei com 2 ou 3 rachadelas nas paredes, uma situação normal  que já foi resolvida. E se me perguntares quem são os culpados em Coimbra, querido diário, acho que não te sei responder. O fiscal foi honesto mas ninguém lhe ligou; o empreiteiro foi aldrabão e conseguiu aumentar os lucros, uma atitude bastante comum na espécie humana; e o dono da obra, o Estado, não tem rosto. É verdade que é representado por homens mas estes não se sentem donos do que representam. Por isso não se aplicam a 100% e desleixam-se um bocado no controlo. E no meio dos Despachos, das Portarias e dos Decretos, às vezes perde-se o fio à meada. Achas que são culpados? Porquê? Eu não acho, são humanos e os humanos são assim. Movem-se por incentivos e caem facilmente na preguiça, esse maravilhoso pecado mortal. E cuidam sempre melhor dos seus filhos do que dos filhos dos outros. No fundo, a culpa é da natureza humana e nesse caso podemos encontrar a explicação no Mendel, ou no Freud, ou no Darwin, ou em Deus, ou em todos eles em conjunto. Achas que a natureza humana vai mudar, querido diário? Pois, eu acho que não. Talvez seja mais fácil e mais proveitoso tentar mudar o sistema. Vem na Bíblia, ou, se não vem, devia vir.

Sem comentários:

Enviar um comentário