terça-feira, 6 de maio de 2014

Não, Senna, tu não eras nada de especial



Acho bastante exagerados os elogios a Ayrton Senna que tenho ouvido nos últimos dias a respeito do 20º aniversário da sua morte. É verdade que o piloto brasileiro tinha apenas 4 anos quando guiou pela primeira vez um kart, e que não tinha sequer 10 quando começou a conduzir automóveis a sério, e que iniciou a participação em competições oficiais ainda com 13, e que deu tanto nas vistas na sua primeira temporada na F1 que nem parecia estar a conduzir um carro de terceira categoria, e que eu já estou a utilizar demasiadas vezes o “e que”. Tudo isso podem ser factos mas, com excepção da repetida utilização do “e que”, não vejo nenhum que seja assim tão excepcional. Eu também guiei triciclos aos 4 e bicicletas antes dos 10. E ainda não era maior de idade quando me retiraram as rodinhas. Mas, já se sabe, aos portugueses nunca ninguém atribui os méritos devidos.
Amigos meus, emocionados e melancólicos, realçam a sua perícia extraordinária e a sua personalidade extremamente competitiva, como se nunca me tivessem visto a tirar um fino perfeito e a tentar bebê-lo de golada mais rápido do que toda a gente. Ou então comentam a sua forma física, fruto de milhares de horas de exigentes treinos, subvalorizando notoriamente o peso de uma caneca de cerveja. Dizem-me, com os olhos molhados e a voz embargada, que era um homem com um coração de ouro, emotivo e emocionante, tão humano que não se importou de abdicar de uma primeira posição na grelha de partida para poder prestar assistência a um colega acidentado. “E eu?!”, respondo-lhes um pouco zangado, “que fui buscar uma água com gás ao Tóne, filho da Dona Lurdes, depois de ele se ter vomitado todo à saída da discoteca!” Mas não adianta, parece que isso não conta. O herói é sempre o outro, o herói é sempre o estrangeiro.



GP da Bélgica 1992: correndo para o carro de
Érik Comas para o salvar (tss, que grande coisa)


E continuam a elogiar, sem prestarem atenção aos meus argumentos, dando a entender que o homem, além de acreditar em Deus, era ele próprio um semideus. Afirmam que era amado pelo povo e que retribuía esse amor com obras sociais e com atitudes heroicas, como daquela vez em que pilotou no GP do Brasil com a caixa de velocidades avariada só para conseguir dar aos seus compatriotas a alegria de uma vitória caseira. Mas esquecem-se da deliciosa recompensa que obteve com esse feito: um estado de exaustão física e psicológica tão intenso que não teve forças para sair sozinho do carro no fim da corrida e precisou de ser arrastado para o pódio. Pois é, só se lembram do que ele deu à F1, ninguém quer saber do que a F1 lhe deu.


GP do Brasil 1991: esforçou-se até à exaustão mas
depois teve ajuda para sair do carro (assim até eu)


Como hiperbólicos que são, defendem que a sua coragem era sobre-humana, e entram praticamente em êxtase quando relatam a sua vitória no Estoril em 1985 e a “volta perfeita” que fez no circuito inglês de Donington Park. Ou então suspiram ao relembrar o seu perfeccionismo e permanente insatisfação com o já realizado, forçando os limites mesmo quando a corrida estava completamente controlada e era apenas necessário gerir o 1º lugar. E dizem tudo isto dando a entender que pilotar um carro de fórmula 1 debaixo de chuva com o acelerador a fundo é uma coisa muito difícil! Ou que é necessária alguma virtude rara e especial para não ceder à prudência e ao calculismo.

Não, Senna, tu não eras nada de especial. Os meus amigos é que são uns exagerados.


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