quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A prisão de José Sócrates: toda a verdade



Agora que consegui prender a vossa atenção com esta pequena ratoeira, passarei a tratar da verdadeira questão de regime. Mais que não seja, do meu. E a questão é que vou ser pai. E pela primeira vez. E é uma menina.
Antoine Marie Jean-Baptiste Roger de Saint-Exupéry, um homem com nomes suficientes para receber a Duquesa de Alba nos salões do paraíso, escreveu um dia que as crianças têm de ter muita paciência com os adultos. Parece-me agora que o éternel enfant  se esqueceu dos simpáticos fetos na simpática frase. E como sofrem enquanto estão hospedados no T0 ventral! Em primeiro lugar são permanentemente apalpados por quase todas as mulheres com quem se cruzam. Amigas, conhecidas, colegas de trabalho, vizinhas, tias, primas, cunhadas, a cabeleireira, a empregada do café, a senhora da mercearia, não há representante do sexo feminino que não esfregue deleitada o ventre da minha mulher. Se a gravidez durasse 9 anos em vez de 9 meses, acontecia-lhe à barriga o mesmo que aconteceu à estátua de São Pedro na Basílica Vaticana: tantas vezes os turistas lhe passaram a mão nos pés que o pobre apóstolo já não tem dedos.
E que dizer da falta de privacidade. Os fetos estão sujeitos a uma videovigilância apertada, efectuada com recurso a sistemáticas ecografias não respeitadoras de princípios salutares de uma democracia liberal, nomeadamente os de não filmar pessoas enquanto estas estão nuas, ou a dormir, ou a fazer xixi. A sociedade policial em que nos transformámos desrespeita estes valores, confirmando-se também que tem tendência a abusar ainda mais quando está perante criaturas de profunda inocência, sejam elas seres com menos de 38 semanas ou concorrentes da Casa dos Segredos.
A paciência é também necessária aos fetos para que possam aturar de forma graciosa as conversas que os rodeiam. Estas dividem-se em dois estilos opostos: o “fofinho”, em adulação ao “estado de graça”; e o “indignado”, em defesa da grávida. O primeiro pode ser exemplarmente observado nas lojas de artigos para bebés, onde somos recebidos com um “olá famiiiiiiilia!” dito da forma mais querida possível por empregadas muito sorridentes e que são obrigadas contratualmente a terminar 75% das palavras com “inho”. Imagino a minha filha a ouvir uma voz melíflua a perguntar se “o paizinho não quer ver melhor a banheirinha onde vai dar banhinho à princesinha” e a desejar ficar mais uns meses resguardada no SPA intra-uterino. Apesar de estar na mesma imersa em líquido, sempre evita ver as caras de tamanhos piegas. O segundo estilo, o “indignado”, encontra-se por exemplo nas caixas prioritárias dos hipermercados. Entre uma grávida, um deficiente e uma velhota com uma criança ao colo, quem tem prioridade? E se qualquer uma destas pessoas chegar à caixa quando um cliente não prioritário já está a pousar os víveres no tapete, deve este interromper a operação e ceder passagem ou tem o direito de continuar a sua vidinha? E o funcionário da caixa, tem a obrigação de estar atento e gerir estas situações ou é melhor que deixe correr a organização social espontânea? Para estas perguntas há um número de combinações de respostas que é igual ao somatório de todas as pessoas que estão na fila com todas as outras que passam pela zona. Mas há uma personagem que nunca falta: o protector. Fica aqui o “teatro” da última visita da “famiiiiiiilia” ao Continente das Antas:

(entra a “famiiiiiiilia”) 
“Então está aqui uma grávida e vocês não deixam passar?”, resmunga um senhor de camisa Triple Marfel com o bolso derrubado pelo peso da papelada.
“Eu tenho direito a estar aqui, sou muito doente”, responde uma senhora de meia-idade que tem uma bengala no carro para utilizar nas compras de mês.
“A culpa é da funcionária que não abre a pestana, vou fazer queixa à recepção”, grita uma mulher que já pagou noutra caixa qualquer e que transporta o carrinho pelo corredor exterior.
“Eu estou a registar as compras, não consigo controlar o que se passa no fim da fila”, desculpa-se a pobre, completamente arrependida de ter saído da pacatez da aldeia de Trás-os-Montes onde nasceu; “Podia estar sossegada a cuidar da hortinha dos meus falecidos pais, rais´ma parta”.    
“Este país está cheio de gente mal-educada, cambada de filhos da puta”, afirma o homem da Triple Marfel, vermelho de raiva e já com o bolso a chegar à cintura.
“Está a chamar filho da puta a quem?”, vocifera o filho da senhora de bengala, com aspecto de ter acabado de sair do Estabelecimento Prisional de Custóias.  
“Não se preocupem, está tudo bem, nós esperamos”, digo eu, com muito jeitinho, para ver se não se pegam todos à chapada.
“Que merda de homem é você, que não se impõe para defender a mãe do seu futuro filho?”, atiram-me os dois em uníssono, partilhando agora da mesma indignação e da mesma vontade de se pegarem à chapada, já não um contra o outro, mas em parceria contra mim!
“Já não há homens de jeito”, acrescenta a mulher que foi fazer queixa à recepção e que entretanto já regressou acompanhada de uma chefe de caixas.  
“Foda-se”, penso eu, tentado a fazer à funcionária da caixa uma proposta de compra da hortinha dos falecidos pais na tal aldeia transmontana e a mudar-me para lá com a “famiiiiiiilia”.
(acalmam-se as partes; fim do acto)

E pronto, é esta a envolvente da minha filha por nascer. Sim, Exupéry, as crianças têm de ter muita paciência com os adultos. Mas não te devias ter esquecido dos fetos.

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