terça-feira, 9 de junho de 2015

E assim é legada a infelicidade



Diante da marquesa cirúrgica da sala de partos não conseguiu evitar que o pensamento lhe fugisse para os versos anti-procriativos de Philip Larkin. “They fuck you up, your mum and dad”, escrevia o poeta logo na abertura, antes de explicar o mecanismo de transmissão da infelicidade de geração em geração e de alertar as pessoas para não se lembrarem de trazer fihos a este mundo. Sabia que Larkin era um homem tristonho, mas as eventuais características do mensageiro não retiravam à mensagem uma certa dose de veracidade.
Sempre achara o mundo um local inaproriado para crianças, mais parecido com o inferno do que com o paraíso, mas não era por este ângulo que o poema do amargurado inglês o incomodava. De uma certa maneira, a sua consciência podia bem com os males do mundo. As guerras eram uma realidade mas nunca tinha sido ele a iniciar nenhuma; existiam tiranos por todo o lado mas ele era um simples assalariado da classe média; o terrorismo fazia vítimas diariamente mas ele só usava cintos de couro, nunca de explosivos. O que não lhe saía da cabeça era o “Fodem-te a vida, o papá e a mamã”. Sim, o papá e mamã! Não o mundo, nem os tiranos, nem os terroristas. Aliás, se quisesse ser honesto em toda a plenitude da palavra, algo que considerava impossível de suportar, deveria assumir que o que o apavorava verdadeiramente era a parte de “o papá”, a função pessoal e intransmissível que iria passar a desempenhar dali a uns minutos. Se Larkin estivesse certo, seria no cumprimento desse papel que passaria à sua filha as suas falhas, defeitos, vícios, neuroses e preconceitos. Para não falar de tudo o que já tinha sido propagado por via da herança genética, um património que, ao contrário de outros, não espera pela morte de ninguém nem pela leitura de testamento para cair em cima dos herdeiros.
Perante o chamamento da obstetra, acalmou-se, finalmente, fazendo uma promessa a si próprio: não colocaria nos ombros da descendência as grandes expectativas provenientes dos fracassos próprios. Ter tocado cavaquinho no rancho folclórico da terra não era coisa de que se orgulhasse muito, mas não seria por causa disso que iria pressionar a miúda para que esta chegasse a chefe de naipe na Filarmónica de Berlim.
“Está decidido”, afirmou convictamente, “serei um pai leve e despreocupado. Mas que era importante que ela conseguisse pelo menos um lugar na Sinfónica do Porto, lá isso era!”


(publicado originalmente em http://despesadiaria.blogs.sapo.pt)

Sem comentários:

Enviar um comentário